Alan Watts — A Vida Contemplativa
Excertos da tradução em português por Celso Mayer

Nenhum sistema filosófico ou teológico, nenhuma estrutura intelectual precisa pode jamais acolher plenamente a experiência mística de Deus. Não somente o Espírito divino é livre e incontrolável como o vento, mas também a própria experiência contém elementos paradoxais que o procedimento lógico normal não consegue conciliar. Embora não possamos esperar por uma teologia que a explique, podemos, no entanto, encontrar uma que não a ponha em dúvida ou conflite com ela — uma teologia que tenha real afinidade como o misticismo. Uma das razões da dubiedade da atual teologia com relação ao misticismo é que a teologia atribui um valor muito grande a crenças definidas e precisas e à sua necessidade para a salvação. Isso se deve parcialmente ao fato de que um certo tipo de mente fica atemorizado pela mutabilidade, pela natureza evanescente e misteriosa da vida e pensa na salvação como um estado de fixidez e certeza permanentes, do qual foram eliminados, em sua maioria, os elementos perturbadores como a espontaneidade, a surpresa e o mistério. No entanto, nesses mesmos elementos, um outro tipo de mente discerne a atividade de um Espírito vivo. Para ela, a salvação é uma união plena com esse misterioso Espírito e a sua aceitação e, ainda, uma união com a expressão da sua vida e espontaneidade no fluxo evanescente da vida de todos os dias. Para esse tipo de mente, a fixidez é a morte e, ao invés de tentar apossar-se e reter o vento do Espírito, deixa-o soprar livremente à sua volta e através de si mesma, encontrando, em seu próprio movimento, paz, alegria e salvação; renuncia ao desejo de possuí-lo sob qualquer forma ou estado fixo e o deixa possuí-la associando-se ao seu movimento incessante e incontrolável, como o de uma dança ou melodia divinas.

Não é que esse Espírito venha e vá, se transforme ou se modifique. Ele, como o momento presente, se torna evanescente, quando a mente tenta persegui-lo e segurá-lo. O verdadeiro movimento está em suas expressões criadoras, na atividade do Espírito e não no agente; e esse movimento não é propriamente aquilo que se almeja para poder atingir um fim, a exemplo de uma dança de celebração de uma conquista. O próprio Deus é “fonte estática de todo movimento” e em união com Ele o místico sente, da mesma forma que Dante, que

ma già volgeva il mio desiro e il velle,
si come rota ch’egualmente è mossa,
L’amor che move il sole e Valtre st elle.1

O místico por vezes sente que esse Espírito, essa Realidade última, é inseparável do conteúdo imediato da experiência diária, e com base nessa intuição é que frequentemente se constrói a teologia do panteísmo ou do imanentismo. Em outras ocasiões, o místico experimenta a Realidade como algo incomensuravelmente diferente de si mesmo e de todas as coisas criadas, como um Ser infinitamente grande, santo e esplêndido, diante do qual o mundo, como o conhecemos, se apresenta feio, bruto e maligno. Dessa intuição decorre a teologia da transcendência ou o corolário comum do panteísmo — a doutrina do universo ilusório. Há ocasiões em que a Realidade se apresenta ao místico como algo tão vivo e inteligente que ele sente estar em comunhão com uma pessoa; em outras ocasiões, o místico fica de tal modo impressionado com sua natureza infinita e misteriosa que qualquer coisa que lhe lembre o homem, como a personalidade, lhe parece uma limitação inconcebível.

Todos esses elementos aparentemente paradoxais têm seu lugar em um misticismo verdadeiramente completo, em uma plena experiência de união com Deus. Para que essa união seja perfeita, Deus deve estar na mais íntima e inseparável união não apenas com a alma mas também com toda a sua experiência da vida e do mundo. Mas, se aquilo com que a alma estiver unida for Deus, deve Ele, ao mesmo tempo, estar infinitamente acima e além da alma e do mundo e, também, ser infinitamente diferente deles. E mais ainda, se Deus é a fonte e a medida da vida e do poder criador, não pode ser outra coisa que uma pessoa, porquanto uma lei ou um princípio é simplesmente um modo de comportamento automático, mecânico e inerte. Por outro lado, se Deus é a Realidade última, a única fonte de todas as coisas, deve então ser livre das limitações da personalidade, como a conhecemos, e não deve estar sujeito à mutabilidade e às limitações das formas sob as quais Sua atividade criadora é expressa.

A esses paradoxos e antinomias essenciais da experiência religiosa deve ser acrescentado um outro, de ordem mística e filosófica. A mente humana fica profundamente insatisfeita com qualquer forma de dualismo absoluto, com uma religião ou metafísica para as quais a Realidade última não é una e indivisível. Essa insatisfação não é somente sentida nos dualismos grosseiros como o contraste zoroástrico da luz e da escuridão últimas (Ormuzd e Ahrinam) ou o dualismo maniqueísta de Espírito e Matéria; como já vimos, essa insatisfação é até mesmo sentida no “dualismo” do Criador e da criatura ex nihilo. Por outro lado, a razão e o senso moral se rebelam contra o monismo panteísta, que tende a reduzir todas as coisas a uma insípida uniformidade e que assegura que até mesmo as coisas mais diabólicas são precisamente Deus, destruindo destarte todos os valores.

Nenhuma forma de meio-termo ou via media pode solucionar essas antinomias, porquanto a experiência mística as apresenta da maneira mais contrastante e extremada. O meio-termo destruiria completamente sua vitalidade e seu poder sobre a vida humana; tampouco é possível separar esses elementos como o joio do trigo, denominando alguns deles de misticismo “verdadeiro” e outros de “falso”, pois isso seria apenas uma simplificação ridícula. Não obstante, o meio-termo ou a separação têm sido o método tradicional da teologia cristã. Há duas razões para isso. Em primeiro lugar, a “mente teológica”, que acima de todas as coisas busca a definição, a precisão e a fixidez, tem a maior das dificuldades em aceitar o mistério do paradoxo e da incerteza terrível como a verdade última que o mesmo parece envolver. Em segundo lugar, os processos de raciocínio da mente ocidental, fundamentados como são na lógica grega, não podem jamais sentir-se felizes com uma profunda antinomia. Uma proposição deve ser verdadeira ou falsa e x não pode, ao mesmo tempo, ser igual a e diferente de y.


  1. Dante Alighieri, Paraíso, xxxiii. 143-145. “Mas agora meu desejo e minha vontade se revolvem na mente, como se fossem uma roda que se movesse uniformemente, impelidos pelo amor que move o Sol e todas as demais estrelas”. (da trad. inglesa de Norton) .