Como devemos e podemos refletir sobre Deus e falar sobre Ele? Essa foi a pergunta que Jakob Böhme fez a si mesmo desde o início. Ele se fez essa pergunta durante toda a sua vida, e suas respostas variavam. Isso pode ser explicado pela natureza particular de sua atividade criativa. Por outro lado, o sapateiro de Görlitz era flexível o suficiente para se corrigir de tempos em tempos, em silêncio, e para gradualmente completar seu pensamento adotando, em sua observação espiritual, constantemente novos pontos de vista.
“É verdade que o ser divino não pode ser compreendido pela carne e pelo sangue, mas apenas pelo espírito quando este é iluminado e inflamado por Deus; no entanto, se alguém quiser falar de Deus, dizer o que Deus é, deve considerar cuidadosamente as forças da natureza, bem como toda a criação, o céu e a terra, e também as estrelas e os elementos e as criaturas que eles engendraram, bem como os santos anjos, o diabo e os homens, e o céu e o inferno.” É com essa frase que começa o primeiro capítulo de “Aurora”. No original, esse capítulo é intitulado “Sobre a exploração da essência divina na natureza”.
Não é difícil perceber que essa frase introdutória aborda alguns problemas importantes, principalmente o do conhecimento de Deus. Os limites desse conhecimento, sugere Böhme, não são fixados irremovivelmente pela natureza do homem, um ser “de carne e osso”. É por meio do espírito, e não do raciocínio (Vernunft), que é possível “compreender o ser divino”, desde que o próprio espírito tenha sido “iluminado e inflamado” por Deus. Estamos bem cientes de que essas palavras escondem uma experiência concreta. Como se tivesse um leitor diferente diante de si a cada vez, Böhme repete incansavelmente, nos mais diversos lugares de seus livros, a necessidade de iluminação do espírito ou pelo espírito.
Mas por que essa justaposição entre o céu e a terra, Deus e o homem, os anjos e o demônio? Para Böhme, essa associação aparentemente arbitrária das noções mais opostas manifesta o Mysterium magnum: “Pois é no Mysterium magnum — explica ele em um de seus últimos escritos — que a natureza eterna encontra sua fonte; e esse Mysterium magnum sempre compreende duas realidades e duas vontades… O Mysterium magnum é o caos do qual a luz e a escuridão, como os fundamentos do céu e da terra, fluíram e se manifestaram desde toda a eternidade”. Dessa forma, Böhme se distancia da platitude de uma ‘teologia da razão’, defendida por outros que acreditam que podem falar de Deus em termos diretos e qualificá-Lo — Aquele que não tem nome — com um epíteto como ‘bom’, ‘amoroso’, ‘omniciente’, ‘todo-poderoso’, ‘supremo’… e poderíamos mencionar muitos outros adjetivos que foram usados ao longo da história da teologia em uma tentativa vã de penetrar na parede misteriosa do inobjetável. Antes de Hegel, por um lado, antes de Kierkegaard e Karl Barth, por outro, o sapateiro de Görlitz, que veio do luteranismo, descobriu que, na medida em que é possível falar de Deus, Ele só pode ser evocado na forma de duas proposições opostas, constituindo dois polos opostos, precisamente à maneira da dialética. Böhme não quer lidar com o “Deus dos filósofos”, com o qual Pascal acordou-se, e tampouco quer lidar com o Deus dos teólogos. Também não pretende confundir algumas proposições dogmáticas, que os doutores e pastores de sua época podem lhe fornecer, com as respostas que seu perpétuo questionamento e busca exigem.