Burckhardt (Fusus) – Prefácio à tradução de Ralph Austin

Segundo Titus Burckhardt, em seu prefácio à versão inglesa da Sabedoria dos Profetas, Ibn Arabi escreve este seu estudo dos profetas tendo por fundamento uma compreensão muito particular da tradição islâmica, sobre o significado dos Profetas e da Profecia. Este é um tema central no Corão que dá um lugar de destaque às estórias dos profetas (v. Estudo de Sidersky). É de igual importância para espiritualidade sufi na qual diferentes profetas correspondem a vários tipos espirituais e, consequentemente, a diferentes vias de aproximação de Deus. A centralidade do tema juntamente com o escopo espiritual do autor justifica a precaução de Ibn Arabi de que o Profeta lhe ordenara em um sonho que escrevesse este livro Sabedoria dos Profetas.

O estudo dos profetas de Ibn Arabi vai além da teologia oficial do Islame e não hesita em chocá-la com ideias como divindade absoluta, que é inalcançável, por um lado, e divindade relativa, por outro lado, que não existe — posto que não é Deus — fora da polaridade entre Criador e criatura. Este estudo também contém sua teoria de protótipos ou essências imutáveis, que não têm existência no puro Ser mas, no entanto, o refractam na forma de inumeráveis possibilidades.

O pensamento de Ibn Arabi é fundamentalmente platônico; assim não é surpreendente que em seus dias recebeu o apelido de «Filho de Platão» (Ibn Aflatun), à parte de se seu título de «mestre supremo» (ash-Sheikh al-akbar). Seu pensamento tem um selo especial e falta alguma coesão porque é uma mistura de especulação intelectual, no verdadeiro sentido da palavra latina speculare; esta reflexão é acompanhada por visões extáticas. A especulação responde ao conhecimento objetivo, enquanto a visão extática deriva de inspiração subjetiva e mística. Tal inspiração não é, entretanto, em qualquer sentido irreal.

Algumas vezes as duas fontes de conhecimento coincidem e trazem ao texto uma profundidade espiritual extraordinária. Isto é verdade do primeiro capítulo, tratando de Adão, no qual a primeira sentença — muito longa com muitas interjeições — sumariza toda a teoria sufi sobre a manifestação de Deus no mundo. O texto começa com uma paráfrase da proclamação divina, muito conhecida no esoterismo muçulmano, que assim pode ser traduzida: «Eu era um tesouro oculto que ansiava por ser conhecido; por conseguinte criei o mundo». Ibn Arabi continua com uma paráfrase dele mesmo: «Quando Deus desejou considerar as essências de Seus títulos de perfeição cujo número é inexaurível — se preferes, podes também dizer: quando Ele desejou considerar Sua própria essência — em um objeto global que, sendo trazido à existência, resume-se a totalidade da ordem divina, a fim de por tal manifestar Seu mistério a Ele mesmo…». Ibn Arabi comenta: «pois a visão de si mesmo do Ser dentro de si mesmo, é diferente daquela obtida de outra realidade que o Ser usa como um espelho. O Ser é feito conhecido a si mesmo na forma resultando do lugar da visão; esta forma existe com o plano de reflexão e a luz que nele é refletida». Usando este princípio como um ponto de partida, o autor, ainda escrevendo na mesma sentença, fala da criação de Adão e sua recepção do sopro do Espírito Divino (Gen 1,26). Então diz: «E isto é simplesmente a realização da capacidade que tal forma possui; tendo previamente sido disposta, ela recebe o transbordamento inexaurível da revelação essencial…». Ele termina o ciclo com estas palavras: «Fora da Realidade divina, há somente um puro recebedor; mas este recebedor ele mesmo brota do transbordamento do Altíssimo, pois toda a realidade, do início ao fim, vem de Deus somente, e é para Ele que ela retorna também…»

Aplicada à revelação profética, esta consideração indica que o Sabedoria divina é feita conhecida ao recipiente que toma a forma humana deste o daquele profeta. O profeta, recipiente ele mesmo, é de origem divina assim como é identificado essencialmente e de maneira inefável com o protótipo do profeta.

Esta lei de reciprocidade entre a divina revelação e seu recipiente humano também explica a diversidade assim como a unidade transcendente das religiões. Neste caso, a forma receptiva que convida e compele a luz divina a revelar a si mesma de uma ou outra maneira, é a predisposição inerente em um certo setor da humanidade.