Categoria: Lispector, Clarice

  • Domínio de agora

    (Lispector1973) Tudo acaba mas o que te escrevo continua. O que é bom, muito bom. O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas. Aquilo que ainda vai ser depois – é agora. Agora é o domínio de agora. E enquanto dura a improvisação eu nasço. […] Fui ao encontro de mim. Calma,…

  • Sensação atrás do pensamento

    (Lispector1973) Eis que de repente vejo que não sei nada. O gume de minha faca está ficando cego? Parece-ME que o mais provável é que não entendo porque o que vejo agora é difícil: estou entrando sorrateiramente em contato com uma realidade nova para mim e que ainda não tem pensamentos correspondentes, e muito menos…

  • Vibração íntima

    (Lispector1973) Tenho que interromper para dizer que “X” é o que existe dentro de mim. “X” – eu ME banho nesse isto. É impronunciável. Tudo que não sei está em “X”. A morte? a morte é “X”. Mas muita vida também pois a vida é impronunciável. “X” que estremece em mim e tenho medo de…

  • Silêncio

    (Lispector1973) Não são precisos muitos para se ter mina faiscante e sonambúlica: bastam dois, e um reflete o reflexo do que o outro refletiu, num tremor que se transmite em mensagem telegráfica intensa e muda, insistente, liquidez em que se pode mergulhar a mão fascinada e retirá-la escorrendo de reflexos dessa dura água que é…

  • Mistério do espelho

    (Lispector1973) Mas agora estou interessada pelo mistério do espelho. Procuro um meio de pintá-lo ou falar dele com a palavra. Mas o que é um espelho? Não existe a palavra espelho, só existem espelhos, pois um único é uma infinidade de espelhos. Em algum lugar do mundo deve haver uma mina de espelhos? Espelho não…

  • Força do que Existe

    (Lispector1973) Ah Força do que Existe, ajudai-ME, vós que chamam de o Deus. Por que é que o horrível terrível ME chama? que quero com o horror meu? porque meu demônio é assassino e não teme o castigo: mas o crime é mais importante que o castigo. Eu ME vivifico toda no meu instinto feliz…

  • Meditação sobre o nada

    (Lispector1973) Eu costumava pingar limão em cima da ostra viva e via com horror e fascínio ela contorcer-se toda. E eu estava comendo o it vivo. O it vivo é o Deus. […]Vou parar um pouco porque sei que o Deus é o mundo. É o que existe. Eu rezo para o que existe? Não…

  • É-se

    (Lispector1973) Atrás do pensamento não há palavras: é-se. Minha pintura não tem palavras: fica atrás do pensamento. Nesse terreno do é-se sou puro êxtase cristalino. É-se. Sou-ME. Tu te és. […] Ouve-ME, ouve meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. […] Capta essa outra coisa de que na…

  • Sou o és-tu

    (Lispector1973) A harmonia secreta da desarmonia: quero não o que está feito mas o que tortuosamente ainda se faz. Minhas desequilibradas palavras são o luxo de meu silêncio. Escrevo por acrobáticas e aéreas piruetas – escrevo por profundamente querer falar. Embora escrever só esteja ME dando a grande medida do silêncio. […] E se eu…

  • Sou o quê

    (Lispector1973) Mas sou o quê? a resposta é apenas: sou o quê. Embora às vezes grite: não quero mais ser eu!! mas eu ME grudo a mim e inextrincavelmente forma-se uma tessitura de vida. Quem ME acompanha que ME acompanhe: a caminhada é longa, é sofrida mas é vivida.

  • A palavra mais importante da língua: É

    (Lispector1973) Entende-ME: escrevo-te uma onomatopeia, convulsão de linguagem. Transmito-te não uma história mas apenas palavras que vivem do som. […] Tudo o que te escrevo é tenso. Uso palavras soltas que são em si mesmas um dardo livre: “selvagens, bárbaros, nobres decadentes e marginais”. Isto te diz alguma coisa? A mim fala. Mas a palavra…

  • Eu é

    (Lispector1973) Estou de olhos fechados. Sou pura inconsciência. Já cortaram o cordão umbilical: estou solta no universo. Não penso mas sinto o it. Com olhos fechados procuro cegamente o peito: quero leite grosso. Ninguém ME ensinou a querer. Mas eu já quero. Fico deitada com olhos abertos a ver o teto. Por dentro é a…

  • O instante é de um escuro total

    (Lispector1973) Espere: está ficando escuro. Mais. Mais escuro. O instante é de um escuro total. Continua. Espere: começo a vislumbrar uma coisa. Uma forma luminescente. Barriga leitosa com umbigo? Espere – pois sairei desta escuridão onde tenho medo, escuridão e êxtase. […] Agora as trevas vão se dissipando. Nasci. Pausa. Maravilhoso escândalo: nasço.

  • Quero captar o meu é

    (Lispector1973) Só no ato do amor – pela límpida abstração de estrela do que se sente – capta-se a incógnita do instante que é duramente cristalina e vibrante no ar e a vida é esse instante incontável, maior que o acontecimento em si. […] E no instante está o é dele mesmo. Quero captar o…

  • Instante-já

    (Lispector1973) Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-ME do é da coisa. […] Quero possuir os átomos do tempo. E quero capturar…

  • Simetria

    (Lispector1973) Perdi o medo da simetria, depois da desordem da inspiração. É preciso experiência ou coragem para revalorizar a simetria, quando facilmente se pode imitar o falso assimétrico, uma das originalidades mais comuns. Minha simetria nos portais da igreja é concentrada, conseguida, mas não dogmática. É perpassada pela esperança de que duas assimetrias encontrar-se-ão na…

  • O próximo instante é feito por mim?

    (Lispector1973) É com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica. Porque ninguém ME prende mais. Continuo com capacidade de raciocínio – já estudei matemática que é a loucura do raciocínio –…

  • Clarice Lispector (Crônicas): Dies Irae

    Eu não sabia que só o meio-termo não é pecado mortal. Eu tinha vergonha do meio-termo. Os pecados são mortais não porque Deus mata, mas porque eu morro deles. Eu é que não pude arcar com os pecados mortais. O que não consegui com eles é isto o que hoje ME violenta e a que…

  • Lispector (PSGH): Deus

    Quanto mais precisarmos, mais Deus existe. Quanto mais pudermos, mais Deus teremos. Ele deixa. Ele não nasceu para nós, nem nós nascemos para Ele; nós e Ele somos ao mesmo tempo. Ele está ininterruptamente ocupado em ser, assim como todas as coisas estão sendo, mas Ele não impede que a gente se junte a Ele…

  • Lispector (PSGH): provação

    Eu estava comendo a mim mesma, que também sou matéria viva do sabath. Não seria esta, embora muito mais do que esta, a tentação pela qual passavam os santos? E de onde aquele que seria ou não santo, sai ou não santificado. Desta tentação no deserto, eu, leiga, a insanta, sucumbiria ou sairia dela pela…