Em todos os escritos canônicos do budismo, procurar-se-ia inutilmente a afirmação de que não existe o Eu, nem realidade distinguível do eu empírico que sofre repetidamente a decomposição destrutiva. Muito ao contrário, o Eu é afirmado explicitamente; em particular na expressão que reaparece frequentemente para dizer que isto ou aquilo não é o meu eu”. Não devemos esquecer o axioma mil agit in seipsum, nem o que diz Platão: “Quando em um indivíduo, num mesmo momento, a propósito da mesma coisa, constatamos dois impulsos contrários, dizemos que nele devem haver dois seres” (Rep. 604 B). É o caso, por exemplo, quando o Eu é o amigo ou o inimigo do eu-Ego (Samyutta_Nikaya I, 57, 71-72; como em Bhagavad Gita VI, 5-7) e sempre que existe uma relação entre os dois “eu”. Cabe ao budista “honrar aquilo que é mais que o eu” (Anguttara_Nikaya I, 125) e este “mais” só pode ser “o Eu Ipseidade”, senhor do eu, e finalidade do eu” (Dhammapada, 380). É do Eu, e não certamente de si mesmo que fala Buda quando diz: “Tomei refúgio no Eu” (Digha_Nikaya II, 120) ou quando ele ordena aos outros a “procurar o Eu” (Vinaya_Pitaka I, 23; Visuddhimagga, 393), de “fazer do Eu vosso refúgio e vossa candeia” (Digha_Nikaya II, 101; III, 42; cf. Samyutta_Nikaya in 143). Estabelece igualmente uma distinção entre “o Grande Eu” (mah’atta, “Mahatma”, o magnânimo), e “o Pequeno eu” (app’atumo, o pusilanime); entre “o Belo Eu” e o “eu vilão”: o primeiro reprova o segundo quando um erro foi cometido (Anguttara_Nikaya I, 57; I, 149; Samyutta_Nikaya v, 88). Enfim, é absolutamente certo que dizer que Buda “negava um Deus, negava uma Alma, negava a Eternidade” é falso.
Em muitas passagens, diz-se de Buda e outros Arahantes ou Homens Perfeitos que eles “fizeram realizar o Eu” (bhavit’atto): “fizeram realizar”, da mesma maneira que “uma mãe educa seu filho único”; com efeito esta forma causativa do verbo “realizar” — é muito incômodo que ela falte em nossas línguas — tem o sentido de “educar”, “tratar”, “cultivar”, “servir”, “prover às necessidades de”, como therapeuon. Transformar o Eu é uma parte indispensável da tarefa que incumbe ao budista, tão indispensável como sua contraparte negativa, por fim a todo “porvir”. Se uma tarefa é terminada, outra o é ao mesmo tempo, e o fim é atingido. “É assim, diz Woodsworth, que construímos o ser que somos”. Mas o sábio moderno deve distinguir com grande cuidado o “porvir” — que é um simples metabolismo, um processo não dirigido de desenvolvimento automático, do “progresso”, do “realizar” que é uma cultura seletiva. O que se “realiza “é unicamente o eu empírico, composto de corpo e de consciência (vinnana). Fora da constituição corporal, a consciência não pode surgir; nossas “habitações de outrora”, isto é, nossas vidas anteriores, são compostos deste gênero, mas elas “não são minhas”, “não são meu Eu” (Samyutta_Nikaya in, 86); a propósito do religioso que suprimiu nele as condições que trariam uma mutação renovada de sua consciência, nos é dito que é um ser cujo Eu se libertou, existente, plenamente satisfeito, e que sabe que para ele não há mais nascimento, mais porvir (Samyutta_Nikaya m, 55).
O fim último não é somente atingir os mundos de Brahma ou de se tornar um Brahman; certamente que é um prodigioso êxito o de se tornar um Brahman ou, o que é bem mais, o Maha-Brahman da presente idade; mas não é a mesma coisa ter se tornado Brahma, um Buda e Arahant totalmente extinto. A distinção entre Brahman e Brahma, transposta no vocabulário cristão, seria aquela que existe entre Deus e a Divindade; os textos budistas serão esclarecidos pela citação de proposições análogas tiradas de dois místicos cristãos entre os maiores e os mais intelectuais. Ei-los:
Mestre Eckhart diz: “Convém aprender o que são Deus e a Divindade. Deus trabalha, a Divindade não faz trabalho algum. Deus torna-se e não se torna (wirt und entzinrt); ele é a imagem de todo o porvir {werdende); mas a natureza do Pai não “vem a ser” (unwerdentlich ist) e o Filho é um com Ele neste não porvir (entwerdende). O porvir temporal termina no eterno não-porvir” (Pfeiffer, 516 e 497). Pois “é mais essencial que a alma perca Deus, do que ela perca as criaturas” (Evans, I, 274) se ela deve atingir esse estado em que seremos “tão livres como quando não éramos, livres como a Divindade em sua não-existência”. “Por que não se fala da Divindade? Porque tudo o que ela é em si é apenas uma só e mesma coisa, e que nada há a dizer… Quando retornar ao solo, às profundezas, à fonte da Divindade, ninguém me perguntará de onde vim ou o que fui” (Pfeiffer 180-181). “Nossa essência não é aniquilada, embora não devêssemos ter nem conhecimento, nem amor, nem beatitude: isso se torna como um deserto onde somente reina Deus”1. É por isso que o autor desconhecido do Livro de Conselho Privado e da Nuvem da Ignorância faz uma distinção entre aqueles que são chamados à salvação e aqueles que são chamados à perfeição; citando a escolha de Maria “que tomou a melhor parte, aquela que não lhe será arrebatada (Livro do Conselho Privado, f. 105 a) ele diz a propósito da vida contemplativa que “se ela começa neste mundo, ela durará eternamente” e acrescenta que nessa outra vida “não mais será necessário praticar obras de caridade nem chorar pela nossa miséria” (Livro do Conselho Privado, cap. XXI).
Os paralelos deste gênero ajudarão às vezes melhor a compreender o conteúdo do budismo que as citações diretas do cânone búdico: colocam o leitor na medida de passar de um vocabulário que ele conhece a uma linguagem que conhece menos. É quase inútil dizer que para o leitor ou o erudito europeu que se propõe a estudar seriamente uma religião oriental, um conhecimento amplo da doutrina e. do pensamento cristãos e seu ambiente grego, é quase indispensável.
Os dois “eu” se encontram numa dramática oposição quando um dirige censuras ao outro. “O Eu repreende o eu (atta pi atianam upavadati) quando se faz o que não se devia fazer (Anguttara_Nikaya I, 57-58); por exemplo, quando o Bodhisattva mendiga seu alimento pela primeira vez. Os restos pouco apetitosos que lhe dão enojam-lhe o coração, mas “ele se censura e não se deixa abater” (Jataka_tales I, 66). O Eu sabe o que é verdade e o que é falsidade; o eu Feio não pode dissimular sua má ação ao Belo Eu (Anguttara_Nikaya I, 149). O Eu é pois nossa consciência, nosso saber interior, nossa synteresis, o Daimon socrático “que só ama a Verdade” e que “sempre me reprime do que meu eu queria fazer”. Todos os homens sabem por experiência que há “uma coisa na alma, como diz Platão, que os convida a beber e uma coisa que lhes proíbe; uma tem fome e sede, a outra “faz as contas” e cabe a nós decidir qual das duas será soberana, a melhor ou a pior. O “Eu” é o Agathos Daimon; cabe a “mim” obedecer-lhe.
[Ananda Coomaraswamy — Pensamento Vivo de Buda]A “não-existência”, a “fonte”, o “deserto” de Mestre Eckhart são análogas ao Mar dos budistas de que falamos, onde desaparece a diferenciação (cf. a definição da theosis em Nicolau de Cusa: ablatio onmis alteritatis et diversitatis) e ao Mar do Amor, a Não-existência de Rumi, onde o Amante se torna o Amado (Mathnawi, I, 504, 1109; II. 688-690, 1103; III, 4723: VI, 2771 e passim, com os comentários de Nicholson). ↩