====== Filosofia, Moeda, Valor ====== Mas não é somente nas estruturas políticas que se inscrevem mudanças mentais análogas às que parecem constituir, desde que se as limite ao único domínio da filosofia, o incompreensível advento de uma razão estranha à história. Sem falar do direito e da arte, uma instituição econômica como a moeda testemunha, no seu desenvolvimento, transformações que não carecem de relações com o nascimento do pensamento racional. Basta recordar o estudo de Louis Gernet sobre as implicações míticas do valor nos antigos símbolos premonetários na Grécia(("La notion mythique de la valeur en Grèce", Journal de Psychologie, 1948, pp. 415-462.)). O agalma, — vaso, joia, trípoda, roupas, — produto de uma indústria de luxo, desempenha um papel de troca em uma forma de comércio nobre: por seu intermédio, opera-se uma circulação de riquezas móveis. Mas, neste sistema pré-monetário, a função de troca não se apresenta ainda como categoria independente, suscetível de ser objeto de um conhecimento positivo, em um pensamento propriamente econômico. O valor de objeto precioso continua integrado nas virtudes sobrenaturais de que o imaginam carregado. O agalma veicula, fundidos em um mesmo simbolismo de riqueza, poderes sagrados, prestígios sociais, laços de dependência entre os homens; a sua circulação através de dons e de trocas, empenha as pessoas e mobiliza forças religiosas, ao mesmo tempo que transmite a posse de bens. A moeda em sentido próprio, moeda cunhada, garantida pelo Estado, é uma invenção grega do século VII a.C.((Segundo Heródoto, I, 94, a primeira moeda cunhada seria invenção dos reis da Lídia. Cf. P.-M. Schuhl, Essai sur la formation de la pensée grecque", Paris, 1949, pp. 157-158, e G. Thomson, op. cit., p. 194.)). Desempenhou em toda uma série de planos um papel revolucionário. Acelerou o processo de que ela mesma é o efeito: o desenvolvimento, na economia grega, de um setor comercial extensivo a uma parte dos produtos de consumo corrente. Permitiu a criação de um novo tipo de riqueza, radicalmente diferente da riqueza em terras e em rebanhos, e de uma nova classe de ricos cuja ação foi decisiva na reorganização política da Cidade. Produziu, no plano psicológico e moral, um verdadeiro efeito de choque de que se distingue o eco dramático na poesia de um Teógnis e de um Sólon((L. Gernet, Recherches sur le développement de la pensée juridique et morale en Grèce, Paris, 1917, pp. 21 sq.; G. Thomson, op. cit., p. 195.)). Se o dinheiro faz o homem, se o homem é desejo insaciável de riqueza, é toda a imagem tradicional da arete, da excelência humana, que se encontra abalada. E a moeda stricto sensu não é mais, como no Oriente, uma barra de metal precioso que se troca por qualquer espécie de mercadoria, porque oferece a vantagem de se conservar intacta e de circular facilmente; tornou-se um signo social, o equivalente e a medida universal do valor. O uso geral da moeda cunhada conduz a elaborar uma noção nova, positiva, quantificada e abstrata do valor. Para apreciar a amplitude desta inovação mental, bastará comparar duas atitudes extremas. Primeiramente, o que evoca um termo como tokos que designa o juro do dinheiro. Ligado à raiz tek —, "gerar, engendrar", assimila o produto do capital ao aumento natural de um rebanho que se multiplica ao ritmo das estações por uma reprodução natural, da ordem da physis((Cf. Louis Gernet, "Le temps dans les formes archaïques du droit", Journal de Psychologie, 1956, p. 401. L. Gernet nota que o pagamento do juro devia efetuar-se em cada período lunar (Cf. Aristófanes, As Nuvens, v. 1659).)). Mas, na teoria elaborada por Aristóteles, a reprodução do dinheiro pelo juro e usura converte-se no tipo mesmo de fenômeno contrário à natureza; a moeda é um artifício humano que, para a comodidade das trocas, estabelece entre valores realmente diferentes a aparência de uma medida comum. Há na forma da moeda, mais ainda do que na Cidade, uma racionalidade que, operando no plano do puro artifício humano, permite definir o domínio do nomos. Tem-se o direito de ir mais além e de supor, como George Thomson, um laço direto entre os mais importantes conceitos da filosofia, o Ser, a Essência, a Substância, e, se não a própria moeda, pelo menos a forma abstrata de mercadoria que ela confere, através da venda e da compra, a toda a diversidade das coisas concretas trocadas no mercado((G. Thomson, op. cit., pp. 297, 300 e 315. O autor escreve, a respeito de Parmênides: "Just as his universe of pure being, stripped of everything qualitative, is a mental reflex of the abstract labour embodied in commodities, so his pure reason, which rejects everything qualitative, is a fetish concept refleting the money form of value".))? Uma posição teórica como a de Aristóteles parece-nos dever já precaver-nos contra a tentação de transpor de uma maneira demasiado mecânica as noções de um plano de pensamento a um outro((Sobre o caráter específico dos diversos tipos de obras e de atividades mentais, cf. I. Meyerson, "Discontinuités et cheminements autonomes dans l'histoire de l'esprit", Journal de Psychologie, 1948, pp. 28 sq.; "Problèmes d'histoire psychologique des oeuvres", Hommage à Lucien Febvre, Paris, 1954, I, pp. 207 sq.)). O que, para Aristóteles, define a essência de uma coisa natural ou artificial é o seu valor de uso, o fim para que ela foi produzida. O seu valor mercantil não depende da realidade, da ousia, mas de uma simples ilusão social((Marx sublinhou que o ponto de vista do valor de uso permanece dominante em toda a antiguidade clássica. Na perspectiva marxista que é a sua, Thomson parece-nos cometer um anacronismo: só quando o trabalho livre e assalariado se torna ele próprio mercadoria é que "a forma mercadoria dos produtos se torna a forma social dominante" (Capital, trad. francesa de Molitor, I, pp. 231-232), e que o trabalho se torna trabalho abstrato (Crítica da economia política, p. 70). Cf. supra, pp. 230 e 238.)). Só um sofista como Protágoras poderá aceitar a assimilação da coisa, na sua realidade, com o valor convencional que o juízo dos homens lhe confere, através da forma da moeda. O relativismo de Protágoras, que se exprime em um enunciado do tipo: "o homem é a medida de todas as coisas", traduz esta constatação de que o dinheiro, puro nomos, convenção humana, é a medida de todos os valores. Mas é bem significativo que, em Platão, cuja filosofia prolonga o pensamento de Pitágoras e de Parmênides, a personagem do sofista simboliza precisamente o homem que permanece ao nível do não-ser, ao mesmo tempo que se define como um traficante entregue às ocupações mercantis((Cf. L. Gernet, "Choses visibles et choses invisibles", Revue philosophique, 1956, p. 85.)). É verdade que o termo ousia, que, no vocabulário filosófico, designa o Ser, a Substância, significa igualmente o patrimônio, a riqueza. Mas, como salientou Louis Gernet, a analogia não faz senão sublinhar mais ainda as direções opostas em que o pensamento operou na perspectiva dos problemas filosóficos e ao nível do direito e das realidades econômicas((lbid., pp. 79-87.)). No sentido econômico, a ousia é, em primeiro lugar e antes de tudo, o kleros, a terra, o patrimônio por muito tempo inalienável, que constitui como que a substância visível de uma família. A este tipo de bem aparente, ousia ousia phanera, opõe-se, segundo uma distinção usual, se bem que um tanto imprecisa, a categoria da ousia aphanes, do bem inaparente, que, além de créditos e de hipotecas, compreende por vezes o dinheiro líquido, a moeda. Nesta dicotomia, há entre os dois termos diferença de planos: o dinheiro é desvalorizado em relação à terra, bem visível, estável, permanente, substancial, que só ele possui um status de plena realidade e cujo "preço" se colore de um valor afetivo e religioso. Neste nível do pensamento social, o Ser e o Valor estão do lado do visível, ao passo que o não-aparente, o abstrato, parecem implicar um elemento puramente humano de ilusão ou até de desordem. No pensamento filosófico, pelo contrário, a própria noção de ovala elabora-se em contraste com o mundo visível. A realidade, a permanência, a substancialidade passam para o lado daquilo que se não vê: o visível torna-se aparência, por oposição ao real verdadeiro, à ousia. É em um outro termo que se reflete o esforço de abstração que se realiza através da experiência comercial e da prática monetária. Ta chremata designa a um tempo as coisas, a realidade em geral e os bens, especialmente sob a sua forma de dinheiro líquido. Aristóteles escreve: "Chamamos bens (chremata) a todas aquelas coisas cujo valor é medido pela moeda"((Ética a Nicômaca, IV, 1119 b 26; cf. L. Gernet, loc. cit., p. 82.)). Discerne-se aqui o modo pelo qual o uso da moeda pôde substituir o conceito antigo, qualitativo e dinâmico, da coisa como physis, por uma noção abstrata, quantitativa e econômica da coisa como mercadoria. Mas, uma dupla reserva se impõe. Em primeiro lugar, uma questão de cronologia: este testemunho de racionalismo mercantil data do século IV antes de Cristo, não dos começos do pensamento filosófico. Esclarece mais a reflexão de certos sofistas do que a de Pitágoras, de Heráclito e de Parmênides((A fórmula célebre de Heráclito: "O Todo transmuta-se em fogo e o fogo em todas as coisas, como os bens (chremata) são trocados contra o ouro, e o ouro contra os bens", não nos parece situar-se ainda neste plano de um racionalismo mercantil; cf. as observações de Clémence Ramnoux, Héraclite ou l'Homme entre les choses et les mots, Paris, 1959, pp. 404-405.)). Em segundo lugar, as chremata Para utilizar uma fórmula religiosa que não está deslocada na perspectiva filosófica, pertencem ao mundo do aquém, ao mundo terreno; a ousia que, para o filósofo, constitui a realidade, é de uma outra ordem. Não se situa ao nível da natureza, nem tampouco ao da abstração monetária. Como dissemos, o mundo invisível que o pensamento religioso revela é prolongado por esta realidade estável e permanente que, ao contrário da moeda, tem mais Ser do que a physis.