BistamiD
Quem retorna à morada do eu não está mais disposto a invocar Suas palavras.
Levantei-me na véspera, buscando invocar a Deus. Mas não pude. Pareceu-me grosseira a palavra que pronunciei quando era criança. Disse a mim mesmo: “Como invocá-Lo por uma língua em que aflorou tal palavra?”
Esta palavra é como uma queda de neve no verão: que isso aconteça é estranho, mas que isso dure é ainda mais estranho.
De todos os que entram por esta porta, nenhum consegue falar nem ouvir. É penoso para o impotente ser obrigado a fazer tudo por si mesmo e a comer com as próprias mãos.
Que dizes daquele a quem foram concedidos dois apoios: se quer, apoia-se naquele; e se quer, apoia-se neste.
Abû Yazid falava das estações elevadas e dos graus superiores que havia alcançado. Isso chegou a alguém que disse:
— Isto não é possível.
Relataram essa fala a Abû Yazid, que respondeu: — Diga-lhe: “E você, é capaz de ser?”
A invocação de Deus em voz alta é um descuido.
Se o mestre enviasse um de seus alunos em uma corrida e, no caminho, passando por uma mesquita, ele ouvisse o muezim e dissesse: “Primeiro entro na mesquita e faço minha oração, deixarei minha corrida para mais tarde”, tal aluno cairia em um poço sem fundo.
Basta que você não veja em ninguém além Dele a ajuda que o sustenta, o tesoureiro que gerencia seu bem, a prova que autentica sua obra: tal seria a Confiança.
Os humanos pensam que o caminho que leva a Deus é mais notório que o sol e mais evidente. Quanto a mim, peço a Ele que me abra de Seu caminho, nem que seja o equivalente a uma ponta de agulha.
— Qual é o sinal mais glorioso do iniciado?
— Ele compartilha sua mesa, mistura-se intimamente a você, presta-lhe homenagem enquanto seu coração permanece no reino do sagrado.
Quem é sinceramente livre no seio da união se atém com todo o seu ser às conveniências da servidão, enquanto em seu íntimo contempla o Verdadeiro. E quando se encontra na separação, reúne os esforços de que são capazes os zelosos de Sua servidão: tal soma de esforços assemelharia-se aos átomos de poeira que esvoaçam em um raio de luz.
— Quando o homem atinge a estação dos homens neste assunto?
— Quando ele tiver conhecido os defeitos de seu eu e os tiver triunfado.
É muito bonito que você não saiba que é um homem do mal; mas se você for examinado e interrogado, você cairá na acusação.
Ele me enlouqueceu por meu próprio eu, eu morri. Ele me enlouqueceu por Ele, eu sobrevivi. Ele me enlouqueceu por Ele e eu juntos, eu entrei na ausência. Então ele me depositou no degrau da lucidez e me interrogou sobre meus estados. Eu disse:
— Vindo de mim a loucura é aniquilamento, de Ti ela é perenidade, de Ti e eu, ela é clareza. E em todo estado, Tu és o edifício preferido. Junayd disse:
— As pessoas caminham a passos forçados em seus domínios. Ao atingir o domínio de Abû Yazid, elas caminham à vontade, e rápido.
O sufismo é uma luz resplandecente que cativa os olhares assim que a vislumbram.
O eu considera o mundo, o espírito a vida futura, o conhecimento o Mestre. Aquele em quem o eu triunfa contará entre os condenados; aquele em quem o espírito domina se juntará aos zelosos; aquele em quem o conhecimento se estende acompanhará os piedosos crentes.
Moisés, sobre ele a paz, desejou ver a Deus. Eu, não procurei Vê-Lo, foi Ele quem quis me ver.
Abû Yazid estava em Meca com um de seus alunos. Quando ele entrou em Medina, Meca veio e girou ao redor dele. Ora, seu aluno perdeu a consciência e caiu no chão. Quando ele recuperou os sentidos, Abû Yazid acariciou sua cabeça e disse:
— Você ficou surpreso.
— Sim.
— Por Deus, se fosse Bistam quem tivesse vindo a mim, não teria sido suficiente. Abû Yazid partiu para ver um de seus irmãos em Balkh. Após visitá-lo, ele foi à beira do Oxo, para além de Balkh. Ao chegar, as duas margens do rio se uniram. Ele disse:
— Senhor, por que esse estratagema? Por Tua glória, meu Querido! Eu não Te adorei por isso. Por Tua glória! Eu não desejei isso.
Então ele voltou sem ter atravessado o rio.
Convidou meu eu a Deus, ele recuou, eu o abandonei, fui só a Ele.
— Todos temem o Julgamento, gostariam de ser poupados, e eu peço a Deus que me julgue.
— E por quê?
— Talvez Ele me diga: “Meu servo!”, e eu responderei: “Aqui estou!” Assim Ele faria de mim o que quisesse.
Eu vi os homens aqui embaixo se deleitarem em beber, comer, casar. O mesmo no além. Então coloquei meu prazer em Sua invocação aqui embaixo, em Sua contemplação no além.
Quem se familiariza com a linguagem, Deus lhe concede um entendimento para falar com os homens. E se é a Ele que deseja se dirigir, Deus lhe concede uma inteligência que o dispõe a se confiar a seu Senhor.
Convidei meu eu à obediência de Deus, ele recusou. Por isso o privei de água por um ano.
Deus Altíssimo possui uma bebida que oferece à noite a Seus amigos. Eles a bebem; e seus corações, movidos por Seu amor e Sua nostalgia, voam para o altíssimo reino do Invisível.
Em meu coração Tu semeaste o grão do amor. Antes do dia do Chamado serei aliviado. Na união Tu feriste meu coração. O desejo cresce assim que o amor aparece. Ele me serve para beber, meu coração renasce.
A taça dos amantes se nutre da paixão. Se não fosse o Verdadeiro que os protege,
Os iniciados divagariam pelos vales. Abû Yazid viu um homem conduzindo um asno. Ele disse:
— Qual é o seu ofício?
— Sou o servo do asno.
— Que Deus leve seu asno, assim você será o servo de Deus, não de um asno. — Você é Abû Yazid!
— Mas quem é Abû Yazid? Quem o conhece? Abû Yazid chama Abû Yazid e não o encontra.
O Primeiro e o Último, o Aparente e o Oculto: desses quatro nomes os santos participam. É perfeito quem neles se aniquila após ter sido impregnado. Quem participa do Aparente constata as maravilhas de Sua potência. Quem se une ao Oculto observa o que acontece nas profundezas. Quem toma parte no Primeiro se vê encarregado dos tempos passados. E quem perscruta o conteúdo do Último estabelece a ligação com o futuro.
Interrogado sobre o conhecimento depois que seus poderes lhe foram revelados, ele disse:
— “Quando os reis penetram em uma cidade, eles a saqueiam.”
Os seres têm estados, o iniciado não os tem. Os vestígios de seu eu se apagaram. Ele não contempla senão Deus Altíssimo, no sono, na vigília.
Interrogado sobre o amor, ele disse:
— Reduza sua própria abundância a pouco, e transmute a penúria de seu Amado em prosperidade. Fico admirado quando se diz: Eu invoco meu Senhor. Eu O esqueci para invocá-Lo? Bebi o amor taça após taça. Há sempre o que beber.
E ainda tenho sede.
Deus fez de Iblis um cão entre Seus cães. Ele fez deste mundo uma carniça. Ele fez Iblis sentar onde este mundo termina, onde o além começa. Ele lhe disse: “Ponho sob sua autoridade quem se inclina sobre a carniça.”
Um dos amigos de Abû Yazid conta:
“Eu conhecia um jovem dedicado ao retiro. Perguntei-lhe:
— Você viu Abû Yazid?
— Não.
Alguns dias depois, à mesma pergunta, ele respondeu também:
— Não.
Insistindo, ele me explicou:
— Eu vi Deus; eu passo sem Abû Yazid.
Eu o importunei. Em vão. Ele me irritou. Eu disse:
— Ver Abû Yazid uma vez seria mais útil do que ver Deus setenta vezes.
Ele disse:
— Vamos até ele.
Partimos em busca de Abû Yazid. Lá estava ele saindo do rio com a pelisse jogada sobre o ombro. Ao vê-lo, o jovem gritou e expirou. Eu disse a Abû Yazid:
— O que significa isso? Ele afirma ter visto Deus e não morreu por isso, ele te vê e morre?
— Sim. Ele via Deus na medida de seu estado. Ao me olhar, ele viu Deus na medida do meu estado; não podendo se manter, ele morreu.
Então, nós o transportamos, lavamos, envolvemos em um sudário; Abû Yazid orou por ele, o enterrou e chorou.” Eu estava sentado uma noite em meu mihrab. No momento em que estendi a perna, uma voz me interpelou:
— Quem frequenta os reis deve se conformar às regras da boa conduta.
Quem pretende obter a união assaltando o Verdadeiro precisa se ater à servidão.
Uma vez Abû Yazid chamou para a oração. E, ao reunir as pessoas, ele viu em uma fila um homem com sinais de viagem. Ele se aproximou e falou com ele. O homem se levantou e deixou a mesquita. Mais tarde, interrogado por um dos presentes, ele disse:
— Eu estava viajando. E na ausência de água, me purifiquei com abluções secas. E, esquecendo meu estado, entrei na mesquita. Foi então que Abû Yazid me disse: “A ablução seca não é lícita em terra habitada.” Saí, então.
Felicidade eterna, graça eterna.
Ele me carregou uma vez em Suas mãos e me disse:
— Abû Yazid, Minhas criaturas querem te ver.
Eu respondi:
— Adorna-me com Tua unicidade, veste-me com Teu ego, eleva-me à Tua unidade. Então, se Tuas criaturas me virem, elas dirão: “Nós te vimos.” E será a Ti que elas terão visto, não a mim. — Assim que alcancei o reino de Sua unicidade, fui transformado em um pássaro cujo corpo era a unidade e as asas a duração. Enquanto eu continuava a voar nos céus do “como” por dez anos. Voei nesses céus até cem mil vezes. E não parei de voar a ponto de ultrapassar o domínio da eternidade. Lá vi a árvore da unidade.
Depois de descrever seu solo, suas raízes, seu tronco, seus galhos, seus frutos, ele disse:
— E eu olhei, e soube que tudo isso era apenas ilusão.
Eu sobrevoava o domínio do Não-Ser. E não parava de sobrevoá-lo por dez anos. E me tornei um não-ser dentro do Não-Ser, sendo pelo Não-Ser. E eu pairava sobre o território da perdição, e eu me perdi na perda de toda perda. Assim eu me perdi. Eu me perdi no território da perdição, sendo pelo Não-Ser, dentro do Não-Ser, na perda de toda perda. Então eu sobrevoei a cena onde se testemunha a pura unidade ora como iniciado ausente à sua condição de ser criado, ora como ser criado ausente ao seu estado de iniciado.
Plantei minha tenda perto do Trono.
Atravessando um cemitério judeu, ele disse:
— Perdoados!
Passando por um cemitério muçulmano, ele disse:
— Enganados!
Que Tu me obedeças, Senhor, é mais glorioso do que eu Te obedecer.
Adão — sobre ele a paz — vendeu por um bocado a presença de seu Senhor… Se Deus aceitasse minha intercessão em favor dos primeiros e dos últimos, isso não seria grande coisa para mim: eu teria intercedido no máximo por um bocado de argila.
Se Ele aceitasse sua intervenção em favor de todas as criaturas, não seria muito. Seria apenas uma intercessão por um pedaço de argila.
Passando por um cemitério judeu, Abû Yazid disse:
— O que são esses para que Tu os supliques? Basta! Ossos que tanto sofreram! Perdoa-lhes. — O que é o fogo?
— Amanhã eu o reivindicaria. E eu diria: “Que eu seja para aqueles que a ele se destinam a vítima expiatória.” Senão, eu o engoliria. — O que é o paraíso?
— Um jogo de crianças.
Mergulhei em um oceano cujas margens os profetas não transpuseram.
Recitaram diante de Abû Yazid:
— “O dia em que reuniremos, como convidados nobres, aqueles que temem o Misericordioso.”
Ele se agitou, se excitou e disse:
— Quem permanece com Ele não precisa ser convidado, é Seu conviva para sempre.
Amei a Deus e odiei meu eu. Detestei este mundo e amei a obediência a Deus.
Junayd disse:
— Na Verdade de Bistami, todos pereceram sob o império da ilusão. Inclusive Bistami.
Quem morre de amor é redimido por Sua visão. Quem morre de paixão é redimido por Sua comensalidade.
— Os iniciados que visitam a Deus no além são de duas sortes: uns O encontram quando e onde querem; outros O veem uma única vez.
Disseram-lhe:
— Como?
Ele respondeu:
— Quando os iniciados O encontram pela primeira vez. Ele lhes estabelece um mercado onde nada se vende a não ser efígies de homens e mulheres; aqueles que penetram no mercado nunca mais visitarão a Deus.
Ele disse:
— Aqui e no além, Ele te engana pelo mercado. Você é para sempre o escravo do mercado.
Pensei em pedir a Deus Altíssimo para me livrar da necessidade de comida e de mulheres. Então disse a mim mesmo: “Como dirigir tal pedido a Deus se Seu Enviado não o fez?” Assim, abstive-me. Mas Deus me descarregou do desejo das mulheres, a ponto de minha indiferença ser igual diante de uma mulher ou de uma parede.
A duplicidade dos iniciados vale mais do que a retidão dos discípulos.
— Que idade você tem?
— Quatro anos.
— Como é possível?
— Por setenta anos, eu estava velado; só O vejo há quatro anos; o tempo do véu não conta. — Por que você exalta a fome?
— Se Faraó estivesse na fome, ele não teria dito: “Eu sou o vosso Senhor, o Altíssimo”; e se Coré estivesse na fome, não teria sido tomado pela violência; e enquanto Tha’laba vivia na fome, era louvado por todos; uma vez saciado, a hipocrisia apareceu nele.
A contração do coração na dilatação do eu; e a dilatação do coração na contração do eu.
— Quem é o príncipe?
— Quem não tem mais escolha; a escolha do Verdadeiro torna-se a sua.
A impiedade daqueles que anseiam ardentemente é mais saudável do que a fé dos indolentes.