Ibn Ata’allah – Clarão na noite

SkaliTL

Lembra-te, ó amigo, da narrativa de uma longa viagem que tantos homens adormecidos há muito esqueceram.

Uma viagem que não se faz nem pela terra, nem pelo céu, nem pelos oceanos,

Uma viagem cuja distância é ilusória, que dura muitos anos mas que se realiza num instante.

Essa viagem, ó amigo, se a recordares, é a desta vida. Só falta o viajante.

Muitos partiram. Alguns voltaram e outros escapam aos nossos horizontes.

Recorda-te, ó amigo, que em certos momentos de clareza tu mesmo pensaste em partir.

Mas lembra-te também que muito depressa o teu espírito se deixou arrastar pela torpor do mundo, pelos seus clamores e fúrias.

No entanto, deves recordar esses sonhos diáfanos em que julgavas ouvir um chamado, em que vias despontar uma luz.

Deves lembrar-te desses momentos da infância em que o vento parecia dizer-te que a vida estava noutro lugar.

Lembra-te dessas lágrimas sem razão, dessa tristeza indefinida. Provavelmente não o sabias, mas a tua alma já aspirava à sua imagem original.

Quem então, ó amigo, por detrás de tantos véus te chama? Os teus olhos estão distraídos, os teus ouvidos já não escutam e o teu coração recusa-se a compreender.

No fundo de ti habita o receio de que tudo isto não passe de um engano. Tantos homens, dizes tu, abandonaram família e pátria, romperam os laços deste mundo, por vãs quimeras. «Afinal, ninguém após a morte voltou para testemunhar o mundo do mistério!»

A morte, ó amigo, não é apenas filha desta vida, é também sua mãe.

Sê, pois, a tua própria testemunha, pois é em cada instante que vives e em cada instante que morres.

Embora prisioneiro dos teus sonhos e pensamentos, fazes parte da grande viagem. Cada um dos teus respiros aproxima-te ou afasta-te da tua própria verdade. Escuta a palavra do instante que passa: «Neste exato momento desta longa viagem, em que lugar te encontras?»

«Como poderia sabê-lo, eu, cujos olhos ainda não sabem ver a luz?

Sou como o viajante abandonado no meio de um caminho que desconhece. Na sua perplexidade, não sabe se avança ou se recua. Hesitou tanto, perdeu-se de tal modo que já nem sequer sabe qual é o objetivo da sua busca. Já não é mais que um vagabundo, mas sabe no fundo de si que houve um tempo em que foi viajante.

Como poderia eu fazer caber tantos sentimentos contraditórios no frasco da amizade?

Quando poderei ver desfranzirem-se as sobrancelhas, dilatar-se o coração e ouvir finalmente palavras de acolhimento?

A minha alma ressequida anseia pelo bálsamo do zéfiro.

Ó amigo, de onde vem então este desejo?

De um sonho esquecido? De uma imagem sem vestígios?

De uma palavra perdida que o meu coração julga ter ouvido?

Oxalá eu mesmo me perdesse para a reencontrar!»