Morte para o mundo

ADFUR

Mas como decidir essa morte-para-o-mundo? Não há nada a decidir. Nenhum problema de vontade. Não se escolhe renunciar, somos conduzidos a isso. O olhar interior crescendo e se apurando, as coisas que nos retinham caem por si mesmas. Tudo reside num pequeno intervalo pressentido em nós pelo qual percebemos, num relâmpago, o que realmente somos - o resto se desprende sem sofrimento, como uma roupa velha da qual subitamente sabemos que não fornece mais nenhum calor.

Reconhecer isso equivale a atravessar subitamente certa aparência das coisas, a ver, ou retomando um belo verso de O.V. de L. Milosz no Cântico do Conhecimento, a compreender que “não é o sol mortal que dá à colheita sua cor invariável de sabedoria”. Esse estado de sabedoria pressupõe o abandono da vontade, que é afirmação de si. É preciso ir além, alcançar esse estado de liberdade que é um chamado ao ser; não se busca transformar, imprimir sua marca, busca-se ser, transformar-se, ou seja, atravessar sua “forma” primeira, grosseira, para atingir o Absoluto. É o que exprime tão bem Plotino na Sexta Enéada (VI, 5,12,13): “Porque algo se havia acrescentado a ti além do Todo, tinhas te tornado menor que o Todo por esse próprio acréscimo . Ao se tornar 'alguém', já não se é o Todo, acrescenta-se a ele uma negação.”

Aqui tocamos o Conhecimento íntimo de nós mesmos que tudo ordena. A vontade de fato mantém a ideia de posse e, portanto, de perda, já que se deseja para si algo, material ou não. A morte da vontade como princípio de nossos atos concede ao dom o primeiro lugar. Este responde a uma única necessidade interior, a uma decreação: deixa-se ser. Jules Lequier, mestre de Renouvier, em seu diálogo “O Predestinado, o Réprobo”, extraído de A Busca de uma Primeira Verdade, faz confrontarem-se o predestinado e o réprobo; ora cada um deles, sabendo o que é por natureza, tem a visão de seu destino final: o predestinado torna-se condenado; o réprobo, ele, é eleito. Situação cômica que não deixa de permitir uma finura de análise. Num momento o réprobo profere este discurso:

“O ponto importante, ao que me parece, é convencer-se de que nossa vontade se faz pela vontade de Deus que a vê e a faz 'ser tal como seria se não dependesse senão de nós'; de modo que Deus nos faz ser tais como seríamos nós mesmos se pudéssemos ser por nós mesmos Vejo por que me pedistes há pouco para representar a história do mundo reproduzida por um quadro furado: os buracos, os vazios significando a parte do mal. Assim, quando faço o mal, não faço verdadeiramente nada, e então ajo por mim mesmo; e quando faço o bem, é Deus quem o faz, donde resulta que minha maneira de cooperar com Ele consiste em que Ele opera sozinho.”

A vontade, a afirmação individual do eu é uma limitação ao nosso ser. No espírito, age como um fechamento, “fazendo” do homem o único e exclusivo autor de seus atos.