Zolla2016
O que percebemos depende do arquétipo ao qual estamos sintonizados. Entre os dias de hoje e os tempos de Confúcio, quando a afinação das flautas e a postura dos participantes nos rituais eram a máxima questão de Estado, a diferença não é de substância, mas de consciência. Ainda hoje o arquétipo é decisivo, mas sua importância nos escapa porque nossa escassa atenção não capta o que ultrapassa a esfera de interesses da geração atual. Não conseguimos mais compreender o panorama geral de um ciclo histórico, nem mesmo acompanhar a cadeia de causas que, partindo das unidades que ordenam o cosmos, descem até as realidades físicas concretas. Estas são conjuntos de tipos, ainda que se acredite que sejam constituídas por objetos individuais. “Tipo”, em grego, significa marca, sinal, impressão, imagem, forma. As palavras denotam tipos; para descrever um indivíduo, um objeto concreto, combinamos vários tipos entre si, como fazemos operações com números para alcançar a cifra que individualiza a posição de um objeto na série a que pertence, assim como se extraíam da caixa tipográfica os caracteres a serem dispostos na sequência necessária para formar uma palavra.
No Ocidente, ilude-se a si mesmo quem crê que um “indivíduo concreto” exista além da combinação de traços típicos que o define. A educação budista, ao contrário, já em sua fase elementar, treina para romper esse engano: a pessoa não existe senão como um frágil agregado de traços típicos.
A verdadeira concretude, no sentido de coisas concrescidas para formar uma mônada, não se encontra nas palavras e nos caracteres em sua agregação momentânea, mas naquilo que permite combiná-los e dispô-los significativamente juntos em uma unidade. Apenas transcendendo os fogos-fátuos — as palavras e as imagens, as impressões sensíveis — se “toca” a verdade, não colocando a impressão crua e bruta acima de sua expressão elaborada; ambas, a impressão e a expressão, são ilusórias; a verdade está em sua origem, no arquétipo que as gera, motor imóvel que nos oferece o objeto e ao mesmo tempo nos projeta em direção a ele. Se nos voltarmos para o arquétipo do qual emanam tanto a aparência fenomênica quanto nossa percepção, deixamos de buscar o verdadeiro entre os significantes.
O que denominamos um objeto é um conjunto de impressões agrupadas, reunidas em uma unidade pelo arquétipo dominante no momento, que lhe confere sua relativa unidade.
Em algumas línguas úgrico-finlandesas, uma notável transparência do arquétipo se expressa em um caso particular das declinações, o essivo (que significa “na qualidade de”, “em essência”). O essivo, na realidade, não é senão uma ênfase do nominativo, porque nomeamos, percebemos apenas aquilo que atrai a atenção: que tem algo a nos dizer. O que não significa nada não é notado. As realidades são funções de metáforas; se elas não nos “transportassem” a um significado, este não seria notado. E todo significado depende de uma significatividade arquetípica.
Segundo Beer e Kugler, fisiologistas experimentais, todo animal percebe segundo o modelo do bacillum coli, o qual, mesmo sem memória, captura o alimento porque registra seus chamados, assim como um besouro é atraído para um cálice polinizado: como nós, capta apenas as invariâncias, os aglomerados de informação iguais no tempo e no espaço. A medida do ser no devir é o que impressiona a psique, evocando (ou sendo evocada por) arquétipos do ser.
Os fatos são sombras dos arquétipos, dos sonhos fundamentais; os eventos do mundo concreto são reflexos de alternâncias no mundo arquetípico.
Fatos e eventos dilacerantes, feridas e golpes parecem atestar que o fato bruto é, por si só, o significado último e inexorável. Mas a dor é infligida para possuir ou para exorcizar uma psique, em virtude do sentido ulterior que lhe é atribuído. A ferida é infligida porque significa uma marcação, uma afronta. O vencido, por outro lado, beija a mão do triunfador por uma necessidade de reverência, pela convicção de que os deuses concederam a vitória: não sofre um mero abuso, e aqui reside o horror da opressão, como observou Weil: a derrota é sentida como uma resposta dos deuses, não como um simples fato nu e gratuito.
Não existe um evento em si e por si; a própria morte pode “ser” uma passagem para a vida verdadeira, uma ocasião de alegria em vez de uma destruição crua e irredimível; o sofrimento pode “ser” uma honra almejada ou um estímulo ao prazer ou uma oportunidade para mostrar-se superior à condição humana, em vez de um mero e horripilante desperdício. Tudo depende do sonho no qual morte ou dor se encaixam, do sentido que lhes é atribuído e infundido.
Os apelos à realidade “áspera”, a um critério garantido de sanidade mental são exorcismos vãos, nada podem contra a potência eminente dos arquétipos. As ideias sobre o que é real, os paradigmas de sanidade mental são arquétipos, que ora estão no horizonte, ora em eclipse.
Quando os sonhos arquetípicos colidem entre si, só resta tentar traduzi-los uns nos outros, sabendo, no entanto, que não há garantia de sua transposição mútua. A verdade não é o objeto, cuja essência é ser percebido; enquanto buscamos a verdade nos objetos aparentes ou no fato de percebê-los, estamos condenados à decepção. Há quem se rebele contra essa condição e esbraceje, como se diz que fazia o Dr. Johnson para refutar Berkeley e sua doutrina de que tudo está na consciência. Às vezes, pacientes em tratamento declaram com ferocidade: “Esta mesa aqui existe”; Milton Erickson, o grande hipnotizador, recomendava ouvi-los com sobrancelhas franzidas, mostrando-se severo ao fixar os objetos que apontavam, convidando-os a repetir as razões pelas quais era absurdo negar a evidência dos sentidos, interrompendo-os para declarar que se deseja entendê-los bem, mais profundamente, levando a conversa para como é bom posicionar o corpo, com que grau de tensão, para aceitar, segundo o bom senso e a objetividade, as coisas como são, em sua concretude. Uma vez que o hipnotizador consiga estabelecer uma dependência do paciente às perguntas que lhe são feitas, será fácil fazê-lo cair em um sono mesmérico, no qual “esta mesa aqui” poderá se transformar em qualquer coisa.
Blake chamou de Ulro e Los os arquétipos criadores de “realidade”: A falsa aparência que ao racionalista parece um globo girando no vazio, é um engano de Ulro. Nada sabem disso o microscópio e o telescópio, que alteram a relação entre os sentidos sem afetar as coisas. Todo espaço maior que um glóbulo vermelho no sangue é uma visão criada pelo martelo de Los, e todo espaço menor que um glóbulo no sangue se abre para o Eterno, do qual esta terra vegetativa é a sombra. O glóbulo vermelho é o sol incansável criado por Los para medir aos mortais cada manhã o tempo e o espaço. A meditação desmente inexoravelmente que o objeto da percepção possa subsistir sem ser percebido. Ela encontra fatalmente, se busca a verdade nos fatos, uma curvatura que a devolve à sua origem dentro da consciência e, portanto, dentro de um arquétipo, dentro de um esquema unificador que, por sua vez, remete à unidade que toda unificação pressupõe. Apenas revogando a fé no “véu pintado” das aparências múltiplas, dos objetos autossuficientes, apenas invertendo o caminho, estaremos no rumo certo, reconhecendo que a verdade é indicada não pelas aparências, mas pelas aparições dos arquétipos. A vida cotidiana nos dispersa entre as milhares de aparências, mas a meditação as reúne em uma; assim, no arco-íris, o esplendor branco da luz parece refratado em mil cores; como diz o dístico de Shelley: A vida, como uma abóbada irisada de cristal, mancha o branco fulgor do Eterno. Todas essas considerações se sucedem em um poema de Sen no Rikyu, o grande mestre japonês da cerimônia do chá no século XVI, onde se mostra como a atenção se desloca gradualmente para os diversos objetos à medida que entram no jogo ritual: cadeira, mesa, bule, xícara: A cerimônia do chá é apenas aquecer a água, preparar o chá e bebê-lo. O ser como tal, sem atributos, é simbolizado pela cerimônia e, portanto: Faze com que ela desça ao teu coração sem mais ver com os olhos nem ouvir com os ouvidos. Até agora permanecemos na primeira fase, de abstração e concentração, à qual segue a consciência dos números arquétipos: A prática consiste em: começar por um, alcançar dez, sabendo como voltar de dez a um, à origem.