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Essa ordem, de onde vem todo o sentido (Abellio)

Abellio, 1983

Em sua época, Balzac constatou, sem mais comentários, o fascínio irresistível que os adultos verdadeiramente corruptos exerciam sobre os jovens de alma pura. Hoje, em que não sabemos mais ver pureza em lugar algum, são, ao contrário, os velhos sábios que se assustam com a precocidade de uma juventude embriagada por partir para o mar aberto, mesmo que seja para afundar de corpo e alma, uma juventude que já pressente, sem nunca ter pago o preço, que nunca há mancha para os seres nobres, mesmo na desordem e na poluição infinitas deste tempo. Mas de onde poderia provir, no mais profundo, essa nobreza, senão da presciência de que a vida, toda a vida, provém de uma justa inteligência das coisas, mesmo que esta, para a imensa maioria desses jovens da grande viagem, permaneça enterrada ainda mais fundo do que eles jamais descerão? Assim como sua extrema impudência, a ciência inata de Marie-Hélène não tinha outra raiz senão essa ordem, de onde vem todo o sentido. Desta intuição infalível, ela dava muitos exemplos nos julgamentos que fazia, antecipadamente, sobre o comportamento de seus “amantes”. Ela parecia, a respeito deles, ter um conhecimento ou, melhor dizendo, uma presciência infalível: “Sou um pouco bruxa”, escreveu ela certa vez com humor, como que de passagem. No entanto, era essa a raiz de seu tormento. Esses “videntes”, dos quais ela fazia parte e cujos “poderes” são, aliás, muito mais comuns do que se imagina, são tão permeáveis ao invisível que se tornam o ponto de encontro de uma multiplicidade indefinida de vibrações entrelaçadas vindas de fora, uma espécie de caos ativo do qual o seu eu, atacado por todos os lados, é, por outro lado, evacuado. Os leitores da minha editora não foram tocados pelo que havia de patético numa confissão em que Marie-Hélène, sem saber, dizia como se defendia, precisamente, contra essa abertura, essa violação de si mesma. O eu dos “médiuns” é geralmente pouco afirmado. O de Marie-Hélène era, pelo contrário, de uma intensidade terminal. Parada, desafio, narcisismo, compensação por alguma falta eram aqui palavras de psicologia barata. Se ela se abandonava a um erotismo tão desenfreado, era, paradoxalmente, para não se deixar despossuir de si mesma pelos outros, e eu diria mesmo que ela preferia os homens que sua clarividência, se quisesse ser seletiva no plano do espírito, teria descartado.

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