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Cem Terrenos (Ansari)

Ansari, 1985

O primeiro texto (Cent Terrains) não é propriamente um livro, escrito ou ditado pelo autor para ser lido, memorizado e divulgado. Trata-se de notas tomadas por um discípulo (ou por vários, tantas são as variantes entre os manuscritos) durante um ensinamento oral, em que o mestre se deixava levar pela inspiração do momento. Temos aqui uma dessas longas digressões em que, a propósito de um versículo do Alcorão (aqui Alcorão, III, 31), Ansârî tratava abundantemente de um assunto evocado pelo texto. Assim, diz-nos Kutubî, ele se deteve no Alcorão, II, 165 (“Os que crêem são os mais ardentes no amor de Deus”) “durante um longo período de sua vida, dedicando-lhe muitas aulas”. Ainda sobre o Alcorão, XXXII, 17 (“Nenhuma alma sabe o que Eu escondo de alegria para os homens, em recompensa pelo que fizeram”), ele declarou ao seu público: “Em cada um dos Nomes de Deus há um mistério oculto”, lançando-se numa exposição detalhada sobre os segredos contidos nos nomes divinos, que não conseguiu terminar antes de morrer. Da série de aulas sobre o itinerário espiritual, Os Cem Terrenos nos dão apenas o esqueleto, cabendo ao mestre preenchê-lo à sua maneira e responder às perguntas dos seus ouvintes. Vamos aceitá-los como tal, sem pedir à obra mais do que ela pode nos dar.

Da introdução, vários pontos devem ser destacados:

Primeiro, uma precisão de vocabulário: “Esta proximidade, se ultrapassada, é uma etapa (manzil); se demorada, é uma morada (maqâm)”, e ainda: “Cada uma dessas mil moradas é uma etapa para quem caminha, e uma morada para quem encontra.” Isso respeita a diversidade de vocações, pois o que é transitório para um pode ser estável para outro. Para considerar essa relatividade, Ansârî falará de cem Terrenos (maydân), termo neutro que evoca um terreno de exercício ou um campo de batalha.

Três tipos de pessoas falam sobre o itinerário espiritual: uns a partir de experiência pessoal, outros relatam o que leram ou ouviram, e outros ainda fingem e são apenas impostores. Portanto, é preciso ser perspicaz e avaliar a autenticidade e natureza do ensino recebido.

A vida espiritual e a experiência mística (a Realidade, haqîqa) são inseparáveis da observância da Lei (charî'a), ou seja, das exigências da religião comum. “A Lei está toda na Realidade, e a Realidade toda na Lei. É sobre a Lei que a Realidade é construída. A Lei sem a Realidade é infrutífera, a Realidade sem a Lei é infrutífera, e a ação daqueles que agem sem uma e outra é infrutífera.” Não poderia ser mais claro: para Ansârî, o sufismo não é outra coisa senão o Islã de todos, aprofundado interiormente e vivido até o fim. Todo bom muçulmano deve ser um sufista, e todo sufista um bom muçulmano.

O retorno a Deus (tawba), que inclui “o arrependimento no coração, a desculpa na língua, a ruptura com o mal e com aqueles que o praticam”, é a condição permanente do caminho espiritual. É “o sinal que indica a rota, o mestre das cerimônias, a chave do tesouro, o intercessor que permite o encontro, o grande mediador, a condição para ser aceito, o segredo de toda alegria.” (CT1).

Dito isso, os cem terrenos se sucedem, sem qualquer organização ou agrupamento, cada um “nascendo” (zâyid) do anterior, segundo a fórmula invariável que introduz cada capítulo, até o aniquilamento (fanâ') e a subsistência (baqâ'), culminância do itinerário espiritual. Esses dois estados, correlatos, são sugeridos mais que descritos numa passagem impressionante: “O aniquilamento é não ser mais nada. Três coisas se aniquilam assim em três outras: a busca se aniquila na descoberta, o conhecimento se aniquila no objeto conhecido, e a visão se aniquila no objeto visto. Quem poderia encontrar o que nunca deixou de ser naquilo que antes não era? Quem poderia encontrar o Real subsistente numa forma perecível? Quem poderia adquirir o que tem valor no que não tem nenhum? Tudo que não é Ele se encontra entre três coisas: um ontem que já não é, um hoje que desaparece, e um amanhã que ainda não é. Assim, todos são nada exceto Ele, a menos que sejam por Ele. Assim, todo o Ser, é Ele! As chuvas que chegam ao Oceano nele se perdem; a estrela desaparece na luz do dia; em si mesmo é aniquilado quem chega até o Mestre.

O Senhor (que seja exaltado!) e isso é tudo. Cortados, os laços. Desaparecidas, as causas. Anuladas, as aparências distintas. Desvanecidas, as fronteiras. Aniquilados, os entendimentos. Impossível, a história. Finda, a alusão. Excluída, a expressão. Apagada, a Palavra Recebida. E Deus só, por Si mesmo, subsistindo!” E o amor? Ansârî o reserva para a conclusão: “Esses cem terrenos se abismam todos no terreno do amor.” Não há necessidade de defini-lo ou analisá-lo, pois ele é o motor de todo o caminho espiritual. Basta assinalar as três “moradas” que comporta: retidão (râstî), embriaguez (mastî), e aniquilamento (nîstî). Elas constituem as grandes etapas da marcha para Deus.

O estudo de cada terreno geralmente inclui três elementos: uma citação corânica, uma definição e uma análise. Em treze casos, a definição se reduz a dar o equivalente persa do termo árabe. Em vinte e dois casos, explica o significado em poucas palavras, fora de qualquer sentido propriamente espiritual. Daí resulta que a diferença entre certas noções não é evidente. Por exemplo: A tawba é voltar-se para Deus (cap. 1). O arrependimento (inâbat) é voltar-se totalmente para Deus (cap. 3). O tabattul é desviar-se (cap. 26). Nos três casos, o verbo é o mesmo: bâz gachtan, que indica um movimento de conversão.

O khawf é o temor (cap. 33). O pavor (wajal) é mais forte que o temor; é o medo dos que têm o coração vivo (cap. 34). O terror (rahba) é um temor superior ao pavor (cap. 35). A solicitude (ichfâq) é um temor permanente (cap. 36). A humildade (khuchû') é um temor aliado à prudência e submissão (cap. 37). A tranquilidade (ikhbât) é o temor de quem provou a realidade da sinceridade, viu a desculpa das criaturas e foi liberto de si mesmo (cap. 39). A confusão (hayba) é um temor que nasce da visão, enquanto os outros temores nascem da Palavra Recebida (cap. 41). São as análises que, suprindo a imprecisão das definições, nos revelam as características de cada terreno. Procedendo geralmente por tríades, são de grande diversidade. A noção de grau, fundamental nas Etapas, aqui está praticamente ausente. Ansârî falará de coisas (tchîz) em que consiste tal morada, de tipos (qism), de fundamentos (rukn), de sinais (nichân), etc., conforme a inspiração do momento e sem qualquer sistematização. Usará às vezes comparações imagéticas, muito sugestivas, que convém notar. Citamos a que ilustra o papel preeminente do retorno a Deus. Eis outras: “Saiba que a ciência é uma vida, a sabedoria um espelho, a satisfação um muro, a esperança uma advogada, lembrar-se de Deus um remédio, e o retorno a Deus um antídoto.” (cap. 1). “A clarividência da Realidade é um archote aceso no coração: 'Onde estais?'; é uma voz respondendo ao ouvido: 'Estou aqui!'; é um sinal indicando claramente: 'Estou contigo!'” (cap. 20). “Um suspiro infeliz é a fumaça de um archote apagado, numa sala estreita e sem saída. Um suspiro feliz é uma fonte clara, num jardim ornado de frutos.” (cap. 28). “O temor é o muro da fé, o antídoto que protege a piedade, e a arma do crente.” (cap. 33). “A certeza tem duas asas: uma é o temor e outra a esperança; ora, quem poderia voar com uma só asa? A esperança é o navio do serviço, o viático do esforço, a provisão do culto. A fé pode ser comparada a uma balança: temor e esperança são os dois pratos, o ponteiro é o amor, e os pratos estão suspensos nos costumes virtuosos.” (cap. 43). “A aspiração é uma compra. O desejo e o temor são os dois pés da fé que lhe permitem caminhar (com um só pé, não pode fazê-lo), e sua cabeça é o amor.” (cap. 45). “A vida é uma loja; a sabedoria seu ornamento, a religião o capital, e o crente o mercador. Os anos passados são um prejuízo ou um remédio; o suspiro que exalamos é um tesouro ou uma marca a ferro; o que nos resta viver é um veneno ou um antídoto. O coração é o cofre do homem; Satanás é o inimigo; a atenção é seu cadeado; o crente está na necessidade. A toda diminuição da alma carnal corresponde um aumento no coração; a todo aumento neste mundo corresponde uma diminuição do valor; a todo aumento na pretensão corresponde uma diminuição do que se possui.” (cap. 58). Tais comparações deviam pontuar o discurso de Ansârî. Ele também citava frequentemente versos, dos quais Os Cem Terrenos nos dão dois exemplos (cap. 2, nota 3; cap. 43).

Para terminar, notemos uma observação divertida, que mostra como o mestre tinha os pés no chão, ancorando seu ensino na experiência da vida: “Três coisas permitem abster-se escrupulosamente do supérfluo: o comprido das contas, a alegria dos adversários em caso de desgraça, e a esperteza dos herdeiros.” (cap. 15). Não é muito sublime: pensar nisso ajuda a contentar-se com o necessário.

Que Os Cem Terrenos, com sua imprecisão e desigualdade, às vezes nos decepcionem e nos deixem com fome, é normal. São apenas notas de aula. Seria preciso ter ouvido os desenvolvimentos de Ansârî com nossos próprios ouvidos. Alguns capítulos, porém, são maravilhas. Principalmente os que tratam do aniquilamento e da subsistência (cap. 99 e 100), em sua brevidade, são de uma força incomparável.

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