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Pecado ou beleza original

Baudelaire1861 Gosto de pensar nas nuas eras passadas, Cujas estátuas Febo tornava douradas. Então mulher e homem em sua agilidade Tinham prazer, sem nem mentira ou ansiedade, E exerciam (com o céu em suas costas amável) A saúde de sua máquina formidável. Assim Cibele, fértil em frutos copiosos, Não achava seus filhos pesos onerosos; Loba de coração em ternuras imerso, Aleitava em escuras tetas o universo. Elegantes, robustos, os homens podiam Jactar-se das belezas que tal reis os viam. Frutos puros de ultraje e virgens de feridas, Sua carne lisa, rija, insinuava mordidas! O Poeta hoje, quando ele quer conceber Tais grandezas nativas, onde fazem ver Sua nudez a mulher e o homem, sem estorvo, Sente como a envolver sua alma um frio torvo Diante do negro quadro cheio de tormentas. Ó fealdades chorando suas vestimentas! Troncos dignos das máscaras! Grotescos torsos! Magros, ventrudos, flácidos, ó corpos torços! Que, em criança, o deus do Útil, sereno e gentil, Mas estrito, com fraldas de bronze vestiu! E vós, mulheres, pálidas tal como velas, Que a perversão corrói e nutre, e vós, donzelas, A arrastar essa herança da viciosidade Materna e esses horrores da fertilidade! É verdade que temos, nações corrompidas, Belezas por antigos bem desconhecidas: Os rostos corroídos por cancros do amor E belezas — dizê-lo como? — de langor; Mas essas invenções de umas musas tardias Nunca irão impedir que as raças doentias Prestem à juventude uma homenagem grave, — Ao santo viço, ao ar simples, à fronte suave, Ao olhar claro, hialino como água corrente, E que segue a espalhar por tudo, indiferente, Tal como o azul do céu, os pássaros e as flores, Suas canções e perfumes e suaves calores!

Análise de Florent Gaboriau

1. “O poeta hoje, quando quer conceber…” não se assemelha ao sábio quando quer refletir? O primeiro sonha primeiro com as “grandezas nativas”: e o contraste desse sonho com a realidade, hoje palpável, o faz exclamar: Ó monstruosidades, ó pobres corpos retorcidos, e vós mulheres, ai!…

2. O segundo inicia sua reflexão nesta fenomenologia, diante do espetáculo dos fatos, nesta constatação de uma decadência que nada poupa, neste processo da morte que ultraja toda vida; e desse fato, dessa situação tão prodigiosamente constante, ele busca decifrar a causa. Pois não se deixa iludir pela aparência imediata: na própria saúde, ele pressagia a doença fatal, na beleza a languidez - e compreendendo que todo homem está condenado, busca em virtude de quê.

3. Só então, tendo “visto” e compreendido, ele começa a pensar, a sonhar, por que não? - com o que teria sido, sem falta, o homem impecável! O homem e a mulher felizes! Uma natureza de belezas desconhecidas!

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