Vidência (Bonardel)
Bonardel1993
Se buscamos contemplar o espelho em si, acabamos por não descobrir nada além das coisas que nele se refletem. Se queremos apreender as coisas, acabamos por não alcançar nada além do espelho. — Essa é a história universal do conhecimento. (Nietzsche, Aurora) Pelo menos de uma certa forma de conhecimento, que Nietzsche já se havia empenhado em desmistificar em seu tempo. Levar a sério o rumor que emana desse “instrumento de magia universal” que é o espelho equivale, portanto, a vê-lo como o lugar privilegiado onde começa a “ganhar corpo” uma transubstanciação mútua do vidente e do visível, do corpo e do espírito, que tem valor de metamorfose transmutante mais do que de conhecimento, no sentido reflexivo do termo: “O fantasma do espelho arrasta para fora minha carne, e com isso todo o invisível do meu corpo pode investir os outros corpos que vejo.” Que Merleau-Ponty tenha visto aí o início dessa abertura iniciática cujo fundamento ele busca na “fé perceptiva” do homem “natural” só torna mais árdua e arriscada a tarefa de pensar esse evento “fantasmático”: o colapso do domínio de um “sujeito” que se deixa submergir, para não dizer “possuir”, por uma obsessão da qual pressente que ela é a única capaz de operar a metamorfose desse “anonimato inato de Mim mesmo” nesse outro anonimato que é o olhar de um pintor de ícones, cujo poder ele diz lamentar que tenha se perdido.
Se é clássica a definição segundo a qual o alquimista corporifica os espíritos e espiritualiza os corpos — em um “lugar”, é preciso precisar, onde o olhar e a “matéria” entram em relação de co-naturalidade operativa —, então Merleau-Ponty retomou aí uma tarefa das mais filosofais, a partir do “fenômeno fundamental de reversibilidade” que, diz ele, “se manifesta por uma existência quase carnal da ideia, assim como por uma sublimação da carne”. De fato, apenas uma operação de natureza alquímica permite distinguir essa transubstanciação, que faz do quadro “um visível à segunda potência, essência carnal ou ícone do primeiro”, da concepção hegeliana clássica segundo a qual o Belo é “manifestação sensível da Ideia”. São as próprias coisas, do fundo de seu silêncio, que ela (a filosofia) quer conduzir à expressão. Se o filósofo interroga e, portanto, finge ignorar o mundo e a visão do mundo que estão operantes e se fazem continuamente nele, é precisamente para fazê-los falar, porque ele acredita neles e espera deles toda a sua ciência futura. Em vez de deixar o olhar se perder nas profundezas do Ser e se confrontar com o “mistério da passividade” que habita o centro da visão, a filosofia reflexiva preferiu encorajar e legitimar essa “mentira filosófica” que é a alternância mortífera do Ser e do Nada, em um espaço que de modo algum poderia ser um Lugar: uma zona de vazio intersticial, antes, entre o olhar e as coisas visualizadas, acumulando as propriedades de uma *res extensa* banalizada e de um horizonte infinitizado, convocando o olhar e o espírito a sucessivas apostas graças às quais se relança sem fim o jogo de gangorra entre os opostos. Se tal procedimento equivale a “instalar o não-ser como pivô do ser” e, nesse sentido, a “julgar os poderes da vida pelos da morte”, esse não-ser é ele mesmo, em tais condições, mais uma aniquilação do Ser do que um abismo, fundo, vazio, onde poderia renascer e se transfigurar uma co-naturalidade do olhar e do pensamento; o vínculo do olhar e do mundo não sendo mais, a partir de então, senão um ponto cego, uma pseudo-dobradiça geradora de uma cegueira incurável paliada por subterfúgios, por “simulacros errantes” cujas correlações são as únicas legitimadas pela reflexividade como pensamento.
Procedimento filosofal, portanto, aquele empreendido por Merleau-Ponty a partir do ponto cego: “O que era, para a filosofia reflexiva, pedra de tropeço, torna-se, do ponto de vista da negatividade, princípio de uma solução. Tudo se resume verdadeiramente a pensar rigorosamente o negativo.” Ora, o paralelo esboçado por Merleau-Ponty entre o caráter “oculto” de sua abordagem e a teologia negativa não esgota a delicada questão do teor desse “negativo” e do tipo de inversão suscetível de transmutar esse ponto cego em solo e pivô de uma co-nascimento transfigurante do vidente e do visível.
Não há dúvida de que há aí uma guinada inédita tomada pelo pensamento que, distanciando-se da conversão do negativo praticada por Hegel, pretende fazer da “inércia da visão” o fundamento de um novo vínculo destinado a substituir os encadeamentos dialéticos; e de certa passividade, o meio de frustrar o ativismo desenfreado da reflexividade. Ora, se a meditação “operante” empreendida por Merleau-Ponty pretende refletir e interrogar a “fé perceptiva”, é ao preço de outro modo de acompanhamento do olhar em direção e através desse “vínculo natal com o mundo” que poderá figurar como “base da verdade” a certeza, desta vez deliberadamente injustificada, de um “mundo sensível que nos seja comum”. Pois a recusa de “substituir nossa pertença ao mundo por um sobrevoo do mundo” não conduz apenas a ancorar doravante o ato de filosofar no “relevo ontológico” do visível, onde o olhar encontra confirmação de sua pertença nativa ao mundo. O que ele também pode encontrar aí é a certeza nascente de que é, portanto, possível ser liberado do “esclarecimento das significações” — entendido no sentido de elucidação positiva, entenda-se —; o qual conduzia quase sempre a “impor ao inocente a prova de sua não-culpabilidade”. Assim, o que Merleau-Ponty chama de “pensamento selvagem”, “convicção bárbara”, revela-se também o alicerce de uma forma inusitada de ética, inseparável de uma erótica de caráter “iniciático”, capaz de arrancar, em um impulso e acordo comuns, o vidente e o visível de todo sistema de justificação aberta ou implicitamente coercitivo.
E é precisamente, entre outras razões, o que atrai Merleau-Ponty para a pintura: que o pintor seja “o único a ter direito de olhar para todas as coisas sem qualquer dever de apreciação”. Não se trata, portanto, apenas de um pacificador “retorno às coisas mesmas” de ordem fenomenológico, pois a co-naturalidade revelada pela “germinação” e pela “ruminação” comuns do olho do pintor e do visível está prestes a se tornar um princípio de retidão muito próximo daquele posto em obra pela filosofia alquímica da Natureza.
Termo pouco usado em filosofia, o de iniciação, do qual Merleau-Ponty propõe uma definição: “Não a posição de um conteúdo, mas a abertura de uma dimensão que não poderá mais ser fechada, o estabelecimento de um nível em relação ao qual doravante toda outra experiência será situada.” Mas o que podem ser dimensão e nível assim que nos desvencilhamos dos sistemas de “apreciação”, senão o equivalente filosófico dos volumes e estratificações que o olhar aprendeu, em contato com a pintura, que poderiam permitir-lhe acessar esse “fundamental”, essa “camada de sentido bruto” de que a filosofia reflexiva se cortou? É, portanto, a imagem da fissão que vai impulsionar toda a “dialética” do visível e do invisível, no duplo sentido de uma ruptura ontológica aparentada ao “grito inarticulado” do qual Hermes Trismegisto dizia que parecia “a voz da luz”; e de uma desintegração “nuclear” vivida por um “sujeito” que acreditava poder se dizer pensante sem se assegurar de que era, antes de tudo, vidente: “A visão não é um certo estágio do pensamento ou da presença a si: é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir de dentro à fissão do Ser, ao término da qual apenas me fecho sobre mim.”
Está claro, portanto, que a abertura “iniciática” não se assemelha à de uma janela para o mundo, geradora de uma “visão de mundo” que alimenta essa filosofia do “espectador absoluto” que Merleau-Ponty tanto criticou por “não nos abrir ao mundo senão nos selando na série de nossos eventos privados”. Se há, ao contrário, “defenestração” nessa “deiscência”, a dificuldade é então menos para o filósofo pensá-la como fissão continuada e seguir seu movimento metaforizante, assim como o pintor recaptura “a constituição da paisagem como organismo nascente”. Ela reside antes na apreensão, necessariamente não conceitual, do próprio fenômeno “nuclear” onde se origina o movimento, que junta onde rasga, ilumina onde obscurece; essa fissão não sendo privilégio nem do vidente nem do visível, uma vez que sela sua pertença comum e inaugura a possibilidade de sua transubstanciação, sem que se entenda de antemão que uma chame necessariamente a outra, aliás.
Mas em que Merleau-Ponty, ao se distanciar assim da filosofia reflexiva, não estaria simplesmente retomando o lirismo do “grande ritmo” e da “curva única” caros a E. Faure, por exemplo? Ou da “grande estrofe” claudeliana, igualmente enraizada no corpo reconhecido como possuidor nele mesmo “do movimento mesmo cujos horizontes sucessivos (…) são os reportadores circunferentes”? Pois em Claudel já o olhar era eixo e linha serpentina capaz de co-nascer com o mundo circundante como “o azul conhece a cor de laranja”, ou “a mão sua sombra na parede”; e sobretudo, como conhece a natureza “com seus mares e montanhas, com suas minas e vulcões e o ponto minucioso de seus fios de grama”. Em que, de fato, não é o lirismo que de repente retoma seus ares no seio da filosofia, senão porque Merleau-Ponty se propõe a fazer dessa fissão o núcleo operativo de uma “alquimia” que arrasta em seu rastro uma mutação do estilo e da própria linguagem da filosofia? Assim, é pelo pseudo-conceito de “essência operante, em funcionamento” que se designa “essa coesão em espessura do mundo e do Ser sem a qual a Essência é loucura subjetiva e arrogância”. À sua imagem, o trabalho do pensamento consistirá em indagar uma “abertura às coisas sem conceito”, ou seja, uma nova modalidade de articulação do sensível e do inteligível, do vidente e do visível, pois fazendo surgir “na junção do corpo e do mundo opacos (…) um raio de generalidade e luz”. Não qualquer luz, aliás, pois a “generalidade” assim tornada inteligível não poderia mais ser senão a expressão transfigurada da co-pertença nativa do vidente e do visível.
De certa forma, o olhar e o gesto do pintor permitem, portanto, apreender “essa gênese secreta e febril das coisas em nosso corpo”, e esse ondular das formas em direção ao “campo ambíguo dos horizontes e distâncias”. A tal ponto, aliás, observa Merleau-Ponty, que “se conseguirmos descrever o acesso às coisas mesmas, será sempre através dessa opacidade e dessa profundidade que nunca cessam”. Mas que “transmutação” pode em um dado momento operar-se que, de tal infinitização, faça justamente outra coisa que uma perpétua perda e, do movimento sem fim das ondas do Ser, o esboço cada vez mais marcado de uma transfiguração? Ora, se o olhar está assim rompendo tanto com o infinito cartesiano “congelado” quanto com aquele, faustiano, da predação e do sobrevoo, a visão eminentemente pictórica de uma profundidade de campo que não seja uma perspectiva geometricamente ordenada supõe também uma possível reversibilidade da visão que não seja nem simples inversão, nem síntese superiormente articulada; e a constituição de um espaço visionário da ordem do finito/infinito onde as migrações do “cheio” trabalham na própria massa do Ser visível como o faz o pintor com sua matéria/cor. Mas se não há vazio ontológico e apenas “diferenças” na gama cromática de um visível mais ou menos levado à visibilidade, e de um invisível mais ou menos sutilmente sombreado, como dizer as irrecusáveis desnivelamentos que pontuam o campo granulado oferecido ao olhar e que a fala gostaria de refletir?
É por isso que o pseudo-conceito de “essência operante” é definido por Merleau-Ponty como “nervura comum do significante e do significado, aderência e reversibilidade de um ao outro”. Ora, um tecido tão finamente nervurado quanto solidamente ajustado em sua reversibilidade aparece então como textura; e dessa amostra de dobra que é a nervura ao sulco, não se trata mais então senão de escala de visão, não de função ontológica. Assim, a onda de choque propagada pela fissão ocorrida no seio do Ser vai, antes de se inverter sobre si mesma, amortecer-se nos sulcos, por ela e pelo olhar conjuntamente preparados; visão que, para ser “operante”, deve fazer do vidente a “matéria” de um sulcamento comparável cuja linguagem também tentará transcrever as voltas inusitadas: esteiros, traços, nervuras, invaginação, acolchoamento, “um certo dentro”, “uma certa ausência”, “uma negatividade que não é nada”…
Nunca, sem dúvida, mais do que na descoberta deslumbrada dessa co-naturalidade migrante e operante do visível e da fala, Merleau-Ponty esteve tão próximo da filosofia alquímica da Natureza, ignorando ela também os vazios onde o nada se insinua, e cujo tecido reversível e sombreado, mas sempre pleno, não cessa de dizer o impulso de um único desejo quebrando, no entanto, por suas epifanias tão múltiplas quanto coloridas, as prerrogativas de uma essencialidade substantivada. Fora, portanto, da “deiscência” que vem abalar e fortalecer a própria raiz de toda co-naturalidade, não há para Merleau-Ponty outra prova “iniciática” senão a experiência dessa co-nascimento reiterada do vidente e do visível. Nesse sentido, é a própria visibilidade tornada “matéria” alquímica que se encontra inflamada, glorificada e pacificada por essa incandescência, sem que se possa discernir nela a pontuação de uma progressão orientada, a não ser — o gesto do pintor sendo também aí iniciador — como o são as pinceladas, acumuladas sem serem perfeitamente superponíveis, em um quadro sempre a ser refeito e ao mesmo tempo já realizado: tal quer ser o estilo, pictural, de uma “alquimia” sem outra quintessência senão esse despojamento e esse sulcamento cada vez mais consentidos de um olhar aprendendo a habitar como sua própria carne um mundo ao qual revela — correndo o risco de ser por ele “assombrado” — que pode tanto quanto ele se fazer e se dizer “vidente”.
Mais característico ainda de uma problemática filosofal do que a assimilação desse movimento transfigurador a uma transmutação é o fato de que, para pensar essa mutação comum do olhar e do mundo, Merleau-Ponty teve de reconsiderar conjuntamente a natureza do espaço: topológico e não mais euclidiano; as figuras (entrelaçamento e quiasmo) assegurando a reversibilidade não contraditória do visível e do invisível; e o caráter “simbólico” de uma corporeidade percebida e pensada como textura carnal do homem e do mundo.
Reveladoras são, portanto, as hesitações de Merleau-Ponty a respeito desse espaço topológico inicialmente concebido como cruzamento, encruzilhada onde advém a visão pelo encontro “de todos os aspectos do Ser”; o filósofo se mantendo, como o homem natural, “no ponto onde se faz a passagem de si no mundo e no outro, no cruzamento das avenidas”. Considerando sucessivamente que esse *topos* poderia ser o “meio comum onde o ser e o nada trabalham um contra o outro”; ou ainda “essa terceira dimensão onde sua discordância se abole”, mas cujo estatuto ontológico escapa por enquanto à filosofia, Merleau-Ponty chega à conclusão de que “não há intermundos, há apenas uma significação 'mundo'”. Nesse caso, como pensar essa espacialidade carnal, esse espaço onde se unem o olhar e o visível, sem recorrer às figuras do entrelaçamento e da palpação? Palpar não é, de fato, de viés e lateralmente, envolver e “voltar” o que o olhar renuncia a vencer, e iniciar assim essa “mediação pela inversão” que é o quiasmo?
Entre outras figuras: sobreposição, passagem por cima, recorte, entrelaçamento… Merleau-Ponty privilegia finalmente aquela — tradicionalmente hermética, aliás — da serpentina que as inclui todas como “modulação do ser no mundo”. Essa figura, no entanto, só sugeriria de forma bastante banal o costuramento — pelo “tráfico oculto da metáfora” — de duas margens até então disjuntas, se Merleau-Ponty não tivesse pressentido aí o início de um trabalho imaginário de simbolização que fosse também o limiar de uma corporificação gloriosa do ser-no-mundo. Infelizmente, permanece em estágio embrionário a exposição da relação assim entrevista entre serpentina, simbolização e constituição de uma “carne” comum ao vidente e ao visível. Assim, o saber do corpo como espaço de reversibilidade do sentiente/sentido é simplesmente transferido para o do mundo como “único Espaço que separa e reúne, que sustenta toda coesão”. Mas compreender por que “toda corporeidade já é simbólica” ou por que — ao contrário da tese de Sartre — a relação com o outro se revela “iniciação a uma simbólica” teria exigido que se precisasse a natureza da passagem entre serpentina e “corporificação” gloriosa, e a do próprio espaço topológico, sempre mais ou menos deduzido nas falas de Merleau-Ponty das figuras da mediação (entrelaçamento e quiasmo) ou assimilado às próprias profundezas do visível.
Fundamental em relação a uma filosofia alquímica da Natureza revela-se principalmente a afirmação da não-superposição das realidades costuradas pela serpentina, lá onde a metafísica busca e mantém a coincidência. Se o olhar do outro descentra mais do que aniquila, é que a relação com o outro é fundamentalmente assimétrica; toda a experiência do corpo sentiente/sentido confirmando que a coincidência “se eclipsa no momento de se produzir”. Longe de ser indício de uma falha do vínculo com o mundo, esse afastamento seria sua condição de possibilidade: seria preciso, diz Merleau-Ponty, “voltar a essa ideia da proximidade pela distância”; a filosofia encontrando ela mesma seu “lugar” apenas nessa “identidade sem superposição, essa diferença sem contradição”. Ao sobrevoo do pensamento reflexivo poderia então se substituir a transversalidade de um olhar envolvente, atravessando assim “toda uma série de camadas do ser selvagem”.
Filosofia oculta, portanto, essa tentativa de devolver à filosofia o sentido de seu “segredo natal”: o invisível não sendo o contrário do visível, muito menos seu recalcado, mas seu avesso; e a abertura ao mundo sendo “iniciática” apenas porque “não exclui uma possível ocultação”. Assim compreendida, a filosofia da existência também se junta à teologia negativa ao afirmar que “o Ser, escalonado em profundidade, se esconde ao mesmo tempo que se revela, é abismo e não plenitude”. Assim, seria vão buscar racionalizar o vínculo entre o olhar e o visível, que é e deve permanecer de ordem erótica e “mágica”; uma magia que Merleau-Ponty não hesita em qualificar de “natural”, assim como a luz que assegura a sinergia e a articulação das partes do “símbolo”. Mas a luz poderia tornar visível o que já não o seria “em semente” e simultaneamente nas diversas camadas e estados de uma visibilidade “ora errante, ora reunida”? O visível sendo essencialmente “qualidade pregnante de uma textura (…) grão ou corpúsculo levado por uma onda do Ser”. Ora, chegar a reconhecer na carne um Elemento, isto é, “uma espécie de princípio encarnado que importa um estilo de ser onde quer que se encontre uma parcela dele”, não é restituir-lhe o poder “multiplicativo” e radiante suposto ser o de toda “tintura” filosofal? Da mesma forma, o “corpo” da linguagem não poderia ser substantivado, mas sempre serpentear entre epítetos onde vibraria ainda assim cada vez a plenitude carnal do mundo, se a linguagem e o silêncio reaprendessem, na “Palavra operante” do filósofo, a se fazer contínua e mutuamente oblação.
Assim, a filosofia da carne entrevista como “visibilidade do invisível” poderia reconduzir o enigma do corpo para o horizonte glorioso do ícone, cujos relevos ontológicos se recortam e se respondem sobre a plenitude dourada de seus fundos, enquanto sua “perspectiva invertida” atesta o apelo do Ser e seu avanço em direção ao olhar cujo sulco acolhe, deixa ressoar, rebater e torcer sobre si mesmas as ondas de assaltos redundantes; filósofo da Natureza e “hermetista” sendo de fato aquele que consente em deixá-las ser e assistir ao seu ser continuado, que portanto se limita a devolver-lhes o sulco, o espaço livre que reclamam, a ressonância que exigem, que segue seu próprio movimento, que portanto é, não um nada que o ser pleno viria obturar, mas questão acordada ao ser poroso que ela questiona e de quem não obtém resposta, mas confirmação de seu espanto.
