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Corbin (CETC:48-51) – Geografia visionária das montanhas

CORBIN, Henry. Corps Spirituel et Terre Céleste. De l’Iran mazdéen à l’Iran shî’ite. Paris: Buchet/Chastel, 1979 (CETC)

É ainda o Yasht xix, o canto litúrgico nomeadamente dedicado a Zamyât, o Anjo da Terra — Dea terrestris — que nos oferece em plena luz a Imago Terrae mazdeísta. O hino apresenta essa característica distintiva de preludiar com uma evocação enumerando todas as montanhas, para então celebrar o Xvarnah e seus detentores ilustres, entre os quais figuram justamente algumas das montanhas. Estas desempenham, de fato, um papel essencial na composição da paisagem visionária que prefigura a Transfiguração da Terra. Elas são por excelência a sede das teofanias e das angelofanias. O Ritual indica que no vigésimo oitavo dia do mês (dia de Zamyât), a liturgia é oferecida «à Terra que é um Anjo, à montanha das auroras, a todas as montanhas, à Luz-da-Glória». Já se esboça uma conexão cujos motivos vão se precisando.

É com um traço impressionante que o livro mazdeísta da Gênese (Bundahishn) descreve a formação das montanhas: sob o assalto dos Poderes demoníacos de Ahriman, a Terra foi tomada por um tremor, sacudida de horror e revolta. Como para lhes opor um baluarte, a Terra ergueu suas montanhas. Primeiro, a poderosa cadeia montanhosa que a circunda, chamada no Avesta de “Hara Berezaiti”. Etimologicamente, é o persa Alborz, e hoje é o nome que carrega a cadeia de montanhas que borda o Irã ao norte, de oeste a leste; foi ali, entre os picos e os altos planaltos internos a essa cadeia, que a tradição sassânida reencontrou os locais dos episódios da história sagrada do zoroastrismo.

Em todo caso, lá ou em outro lugar, o espaço visionário pressupõe a transmutação dos dados sensíveis. Para que o Alborz “real”, por exemplo, corresponda a esse espaço visionário, é necessário que a Imaginação ativa o recapture sob sua espécie imaginal. Por isso podemos deixar de lado aqui toda discussão sobre topografia material positiva, para considerar apenas a Imagem, a Forma imaginal, tal como é órgão de percepção e como é ela mesma percebida por uma psico-geografia, uma geografia imaginal.

Estamos, de fato, muito longe da visão comum e das evidências positivas. O Alborz não cessou de crescer durante oitocentos anos: duzentos anos até a estação das estrelas, duzentos anos até a estação da Lua, duzentos anos até a estação do Sol, duzentos anos até a das Luzes infinitas. Ora, esses são os quatro graus do Céu mazdeísta. O Alborz é, portanto, na verdade, a montanha cósmica, erguida pelo supremo esforço da Terra para não se separar do Céu. Ela é “a montanha resplandecente… onde não há noite, nem trevas, nem doença das mil mortes, nem infecção criada pelos demônios”. Ela é a sede de palácios divinos criados pelos Arcanjos. E as outras montanhas todas tiveram nela sua origem, como uma árvore gigantesca que cresce e estende raízes de onde ressurgem outras árvores. O sistema das montanhas forma assim uma rede em que cada pico ata um nó. Diante de sua enumeração (há alusão a um número de 2.244), tentou-se identificá-las: umas como “reais”, outras como “míticas”. De ambas, digamos apenas que o que nos aparece com certeza é a Forma imaginal, a Imago, ao mesmo tempo órgão e forma da visão no mundus imaginalis.

Eis então um grupo de altos picos cuja localização positiva tem proposto aos pesquisadores dificuldades talvez eternamente insolúveis; em contrapartida, a situação desses altos picos nos instrui sobre a Terra enquanto evento vivido pela alma, ou seja, nos instrui sobre a maneira como a Terra foi meditada pelo órgão da Imaginação ativa. E a localização por meio de uma topografia positiva seria difícil, de fato, pois essa meditação visava a fins totalmente diversos dos de nossa ciência positiva. Há em Erân-Vêj, in medio mundi, todas as montanhas onde a Imaginação ativa percebe uma hierofania do Xvarnah, aquelas onde ela projeta a cena dos eventos que experimenta ou pressente, dando corpo a eles porque ela mesma é sua substância e corpo, aquela que ao mesmo tempo os realiza e os vive.

Há em Erân-Vêj a montanha Hûkairya (Hugar, a muito alta), a montanha que está à altura das estrelas e de onde se precipita o fluxo das Águas celestes de Ardvî Sûrâ Anâhitâ, “a Alta, a Soberana, a Imaculada”, fluxo “que possui um Xvarnah tão grande quanto o conjunto de todas as Águas que correm sobre a Terra”. Ali é imaginada a residência terrestre da deusa das Águas celestes. Ela aparece então como a fonte paradisíaca da Água da Vida. É nessa fonte ou em seus arredores que crescem as plantas e as árvores maravilhosas, e sobretudo o Haoma branco (a árvore Gaokarena): “Aquele que dele come se torna imortal”. Por isso dele se fará a bebida da imortalidade, por ocasião da Transfiguração final. Ao lado do Haoma branco, cresce a árvore de todos os remédios, “na qual estão depositados os germes de todas as plantas”. Da deusa ou Anjo feminino Ardvî Sûrâ depende, certamente, a fecundidade de todos os seres em todas as suas formas; no entanto, ela não é de modo algum uma “Terra Mater” à maneira de Cibele, por exemplo; ela é antes como uma Virgem das águas, pura, casta, imaculada, semelhante à Ártemis dos gregos.

Vizinha da montanha Hûkairya, há em Erân-Vêj a montanha das auroras (Ushidaretia). O canto litúrgico ao Anjo Zamyât se abre com uma estrofe em louvor dessa montanha das auroras. Ela é feita de rubi, da substância do céu; está situada no meio do mar cósmico Vourukasha, onde derrama as águas que recebe de Hûkairya. Ela é a montanha iluminada primeiro pelos fogos da aurora; por essa razão, ela é o receptáculo, o tesouro das auroras, e é também (por homofonia) aquela que dá aos homens a inteligência. “A montanha iluminada primeiro pelos raios da aurora”, diz-se, “ilumina também a inteligência, pois aurora e inteligência são uma só coisa”.

Por fim, o Ritual estabelece a conexão aqui essencial entre a montanha das auroras e a escatologia: ele prescreve consagrar uma oferenda ao Anjo Arshtât à hora de Aushahin (ou seja, da meia-noite até o amanhecer), e dá como razão que a montanha da aurora é mencionada em propiciação ao Anjo Arshtât. E eis que a conexão se esclarece: é na aurora que surge após a terceira noite consecutiva à morte que a alma deve enfrentar a prova da Ponte Chinvat. A montanha da aurora está, portanto, investida da Luz-da-Glória precisamente na hora em que a alma se vê chamada a testemunhar o que foi sua existência terrestre na presença do Anjo Arshtât e de Zamyât, o Anjo da Terra, que ambas assistem o Amahraspand Amertât para a “pesagem” das almas. “As almas estão na luz da aurora quando vão para a prestação de contas; sua passagem se dá através da aurora esplêndida.” Na montanha aureolada pela Glória das auroras, não é o fenômeno astronômico, mas a aurora da imortalidade que é percebida: a Imago Gloriae projetada na aurora nascente, essa aurora se anuncia à alma como a presença antecipada de um estado vivido, ou seja, como antecipação de sua escatologia pessoal.

Completando essa mesma paisagem da escatologia individual, outra alta montanha, o Chakad-i-Daïtik (o pico do julgamento), está situada, também ela, no meio do mundo, em Erân-Vêj. É de seu cume que se lança a Ponte Chinvat, à entrada da qual ocorre o encontro da alma com Daênâ, seu Eu celeste, ou, ao contrário, com a aparição horrenda que só lhe reflete seu eu mutilado e desfigurado por todas as feiuras, apartado de seu arquétipo celeste. É, portanto, o caso por excelência em que a Imago Terrae, transfigurando os dados materiais externos, apresenta à alma os lugares e as paisagens simbólicas de sua eternidade antecipada, aqueles onde ela encontra sua própria Imagem celeste. A alma perfeita atravessa a Ponte Chinvat por seu voo espiritual e pelo poder de seus atos: ela avança até as estrelas, depois até a Lua, depois até o Sol, depois até as Luzes infinitas. São aqui novamente os quatro estágios do crescimento do Alborz. A Ponte Chinvat liga, portanto, o cume que está no centro do mundo à montanha cósmica; e a ascensão desta conduz ao Garôtmân, à “Morada-dos-Hinos”.

Não nos surpreenderemos mais, então, ao encontrar no início do hino a Zamyât a evocação das montanhas, e não veremos nisso um simples “catálogo orográfico desprovido de todo conteúdo religioso”. Pois o flamejar das auroras em seus altos cumes, seus torrentes de águas vivas, as plantas de imortalidade que ali crescem, nada disso é a Terra empírica acessível ao controle neutro das percepções sensíveis. É a Terra percebida em Erân-Vêj, como Terra iraniana originária; é uma Terra que a Imaginação ativa mazdeísta transmutou em símbolo e centro da alma, e que está integrada aos eventos espirituais dos quais a alma é ela mesma o cenário. Já entrevemos aqui como o que a alma percebe por sua Imago Terrae é, de fato, com sua própria Forma imaginal, sua Imagem-arquétipo, sua própria dramaturgia mental. A “geografia imaginal” é o lugar dos eventos da alma. Sem ela, eles não têm mais lugar; eles “não acontecem”.

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