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Corbin (CETC:46-48) – onde se deu a predicação de Zoroastro?

Na verdade, o termo “falsificação” cai completamente fora de propósito aqui, pois o que nos é permitido constatar é precisamente a preservação da estrutura de um espaço essencialmente qualitativo, cujas regiões se ordenam umas em relação às outras não por coordenadas geométricas preestabelecidas, mas por sua qualificação intrínseca. Se houve transposição total do lugar das cenas históricas, esse fato pressupõe e atesta em primeiro lugar a possibilidade de uma operação mental cujo controle e significado escapam à ciência positiva, a qual, apegada apenas aos dados materiais, se vê reduzida a falar de “falsificação” no mínimo inconsciente. Mas o esquema dos sete keshvars, considerado como figuração arquetípica, nos revela precisamente essa possibilidade e o processo: a presença que constitui o centro e que, como tal, é a origem e não a resultante das referências espaciais, essa presença não é situada, mas situativa. Essa presença transfere consigo seu espaço e preserva todo o sistema de suas referências espaciais. Ou melhor, sendo esse centro sempre e em cada caso o Centro, não houve na realidade do evento psíquico nenhuma transferência real (no espaço). O significado do Centro, medium mundi, como lugar onde sempre e em cada caso se realizam os eventos psico-espirituais, como espaço dos hierofantes, permite colocar o problema em um nível onde cessam de se confrontar certeza tradicional e certezas da ciência positiva.

Não pretendemos de modo algum relegar ao “domínio da lenda” a história sagrada do zoroastrismo. Mas há essencialmente isto: em qualquer lugar que tenha ocorrido o evento histórico, no sentido comum da palavra, em sua realidade exterior e material, controlável pelos sentidos das testemunhas — foi necessário, para que a notificação do Evento chegasse até nós em sua identidade espiritual, apesar da diversidade das localizações físicas, um órgão de rememoração funcionando de maneira totalmente diferente das verificações de nossa ciência positiva, a qual, atenta ao que chama de “fatos”, entende unilateralmente por isso o evento físico. Esse órgão de rememoração e meditação religiosa é precisamente a Forma imaginal que, ao se projetar sobre espaços geográficos materialmente diversos, pôde transmutá-los, trazendo-os de volta a si mesma como Centro, de modo que o espaço hierofânico está sempre e em cada caso no centro. A Imaginação ativa pôde então consagrá-los como lugares santos e identificá-los cada vez como sendo a mesma Terra das visões; não é, inversamente, certa qualidade material (mesmo “histórica”) de espaços dispersos que teria imposto a evidência de sua sacralidade, decidido sua identidade, ou, ao contrário, cometido o “erro”. É na alma, não nas coisas, que se realizam as hierofanias. E é o evento da alma que situa, qualifica e sacraliza o espaço onde é imaginado.

Aliás, quais são os Eventos que se realizam em Erân-Vèj? Há as liturgias memoráveis, celebradas pelo próprio Ohrmazd, pelos seres celestes, pelos heróis lendários. É em Erân-Vèj que o próprio Ohrmazd celebrou liturgias em honra de Ardvî Sûrâ Anâhitâ, “a Alta, a Soberana, a Imaculada”, o Anjo-deusa das Águas celestes, para pedir que Zaratustra se apegasse a ele e fosse seu profeta fiel (Yasht V, 17). Foi a ela também que Zaratustra pediu a conversão do rei Vîshtâspa (Yasht V, 104). É em Erân-Vèj que o belo Yima, “Yima, o resplandecente de beleza, o melhor dos mortais”, recebeu a ordem de construir o recinto, o Var, onde foi reunida a elite de todos os seres, os mais belos, os mais graciosos, para serem preservados do inverno mortal desencadeado pelos Poderes demoníacos e para repovoar um dia o mundo transfigurado. O Var de Yima compreende, à maneira de uma cidade, casas, reservas, muralhas. Tem portas e janelas luminescentes que secretam por si mesmas a luz no interior, pois é iluminado tanto por luzes incriadas quanto por luzes criadas. Apenas uma vez por ano, vê-se o pôr e o nascer das estrelas, da lua e do sol; por isso, um ano parece apenas um dia. A cada quarenta anos, de cada casal humano nasce outro casal, masculino e feminino. E talvez assim seja sugerida a condição andrógina desses seres que “vivem a mais bela das vidas no Var constante de Yima”.

Será pela meditação ou por uma campanha de escavações arqueológicas que podemos esperar reencontrar o traço desse Paraíso dos arquétipos, essa Terra celeste no centro do mundo que preserva a semente dos corpos de ressurreição? O Paraíso de Yima não é localizável na superfície de nossos mapas submetidos ao sistema de coordenadas. Diferentemente de uma busca topográfica, trata-se de fazer transparecer a Forma imaginal, a Imagem-arquétipo, que só pode transparecer ali, in medio mundi. Nossa investigação é então esta: como, tal como é percebida desse centro do mundo, se apresenta a geografia visionária, e de quais eventos psico-espirituais essa geografia visionária sinaliza a presença?

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