Corbin (IP:147-150) – Ascensão celeste do profeta (Mi’râj, Corão 17:1)
A literatura do Mi’râj é considerável; o tema foi orquestrado em múltiplas variações. Algumas recolhem muitas tradições folclóricas; outras desdobram de ponta a ponta todos os recursos da mística especulativa e das altas ciências, pois a ascensão celeste do Profeta foi o protótipo que os místicos, cada um por sua vez, tentaram reviver. O tema ilustra, nesse sentido, uma das características da espiritualidade islâmica: longe de haver aqui oposição entre religião profética e religião mística, a primeira abre o caminho para a segunda e encontra nesta o seu acabamento.
É aí mesmo que pressentimos por qual segredo a aventura filosófica se apresenta e se representa, também ela, sob a forma de uma viagem. Se é verdade que a experiência vivida pelo seu Profeta é o protótipo que o místico no Islã se esforça por reproduzir e viver, é solidariamente exato dizer que, na medida em que a pesquisa filosófica deve culminar em experiência mística, a vocação do filósofo é uma preparação para a experiência mística, e que há, nessa mesma medida, algo em comum entre a vocação do filósofo e a vocação do Profeta. Tal é uma das preocupações essenciais dos Ishrâqîyûn, esses platônicos da Pérsia cujo líder foi, no século XII, Shihâboddîn Yahyâ Sohravardî (ob. 1191); sua obra compreende, ao lado de sumas didáticas, todo um ciclo de relatos místicos, nos quais o motivo do mensageiro e da viagem ocupa um lugar preponderante.
Esse duplo aspecto da obra ilustra o pensamento profundo do autor, a saber, que na falta de uma sólida preparação filosófica a experiência mística corre o risco de se extraviar e degenerar, mas que, reciprocamente, uma pesquisa filosófica que não culminasse na experiência mística, em uma realização espiritual pessoal, seria um empreendimento vão e uma perda de tempo (Cf. En Islam iranien…, o conjunto do tomo II.). Daí o sentido tradicional e técnico em que convém sempre tomar o termo gnose (Çirfân, ma’rifat): um conhecimento que jamais permanece no estado de conhecimento teórico, mas que é um conhecimento salvífico, isso porque ele engaja o homem espiritual, o homem interior, na via da libertação e da salvação. É esse mesmo o sentido da viagem a que alguns mestres que se citará convidarão. Por essa viagem, a filosofia é transmutada em uma sabedade divina, etimologicamente uma teosofia.
Que tal seja para os filósofos o sentido de sua aventura filosófica, tomar-se-á ainda como testemunha a obra considerável de outro platônico da Pérsia, Mollâ Sadrâ Shîrâzî (ob. 1640), um dos maiores nomes da filosofia iraniana e que permaneceu, de geração em geração, o mestre pensador dos espirituais do Irã. Porque a ideia de uma quádrupla viagem é uma ideia tradicional entre os místicos do Islã, ela fornece a Mollâ Sadrâ o plano segundo o qual ele organiza sua grande suma de filosofia teosófica, à qual ele dá o título La Haute Sagesse concernant les quatre voyages spirituels (Mollâ Sadrâ Shîrâzî, Le Livre des pénétrations métaphysiques, apresentado e traduzido por H. Corbin, Verdier, coll. « Islam spirituel », 1988, p. 31 ; e En Islam iranien…, t. IV.).
Uma primeira viagem vai do mundo criatural em direção ao Ser divino. O filósofo nela trata dos problemas gerais da física, da matéria e da forma, da substância e do acidente. Ao seu término, o filósofo-peregrino elevou-se até o plano suprassensível das realidades divinas. A segunda viagem é uma viagem a partir de Deus, para Deus e por Deus: viaja-se em Deus e com Deus. O peregrino não deixa o plano metafísico; ele é iniciado nas ilâhîyât, nas ciências divinas (as divinalia), nos problemas da Essência divina, dos nomes divinos e dos atributos divinos. A terceira viagem se efetua a partir de Deus para redescender em direção ao mundo criatural, mas por Deus ou com Deus. Ele efetua, portanto, um percurso mental inverso ao primeiro; ele inicia ao conhecimento das Inteligências hierárquicas e dos universos suprassensíveis (o malakût, o jabarût). A quarta viagem, enfim, é uma viagem a partir do mundo criatural em direção a esse mesmo mundo criatural, mas realizada desta vez por Deus ou com Deus. Ela inicia essencialmente ao conhecimento da alma, ao conhecimento de si, o qual é por excelência o que os filósofos chamam a conhecimento «oriental» (’ilm ishrâqî) no sentido metafísico da palavra, porque ela ilustra a máxima: «Aquele que se conhece a si mesmo conhece o seu Deus.» Ela inicia ao tawhîd esotérico, isto é, ao teomonismo professando que só Deus existe; ela inicia, enfim, aos diferentes símbolos referentes ao devir póstumo do ser humano.
