Corbin (PM:216-219) – sacralização e secularização
A esse nível o contraste não é mais de ordem étnica, nem geográfica, nem histórica, nem jurídica. O contraste essencial aparece entre sacralização e secularização. Entende-se aqui por “sacralização” o anúncio reconhecido, pelo sentimento íntimo, de um mundo sacrossanto transcendente ('âlam al-qods) nos fenômenos e aparências deste mundo. Então que se tome muito cuidado: a secularização em questão é uma secularização que visa à destruição do plano metafísico. Não tem, portanto, de modo algum como contrário uma sacralização das instituições sociais e políticas, pois uma sacralização dessas instituições pode comportar precisamente a própria profanação do sagrado (sua materialização). Reciprocamente, a secularização das instituições pode levar, simplesmente, por uma confusão mortal, à pseudo-sacralização dessas mesmas instituições. Seria desejável que os jovens colegas orientais estivessem sempre perfeitamente conscientes desse paradoxo. Houve, por exemplo, o fenômeno característico da história religiosa do Ocidente: o fenômeno Igreja. A separação entre Igreja e Estado, onde ocorre, consuma, certamente, a dessacralização e a secularização da vida pública. Mas, na medida em que essa dessacralização procede da negação de toda perspectiva metafísica, de todo “além-mundo”, eis que um pseudo-sagrado pode reinvestir as instituições humanas secularizadas. Ao fenômeno Igreja sucede simplesmente o Estado totalitário.
E isso, porque sacralização e secularização são fenômenos que acontecem e seu lugar não é primariamente no mundo das formas exteriores, mas primeiro no mundo interior das almas humanas. São as modalidades de seu ser interior que o homem projeta para fora para constituir o fenômeno do mundo, os fenômenos de seu mundo, no qual decide sua liberdade ou sua servidão. O niilismo advém quando o homem perde a consciência de sua responsabilidade por esse laço e proclama, com desespero ou com cinismo, que estão fechadas as portas que ele mesmo fechou.
A passagem do teológico ao sociológico se realiza quando o social toma o lugar do theos. Por horror de poder ser qualificada como serva da teologia, a filosofia se faz a serva apressada da sociologia. Infelizmente a sociologia não pode mais lhe oferecer a saída que lhe reservava a dupla modalidade da teologia, a saber, a teologia apofática ou negativa (o tanzîh em árabe e em persa) e a teologia afirmativa (ou catafática; esses dois conceitos serão precisados abaixo). De acordo com o que se decide quanto à relação entre uma e outra dessas duas modalidades, quanto à precedência de uma ou de outra, e de acordo com o que se aceita a ausência de uma ou de outra, decide-se o alcance do nihil do niilismo. O niilismo cultural é apenas o aspecto socializado de uma saída infeliz ou falha dessa dialética, isto é, a saída onde se encontra abolida a primazia da teologia apofática, de modo que os dogmas postos como absolutos pela teologia positiva ou afirmativa vacilam como privados de sua fundação e de sua justificação.
Ora, essa saída acarreta consigo o destino da pessoa, o destino do que postula a existência real da pessoa humana, e por isso mesmo o destino das pessoas, dos parceiros eventuais de um diálogo que não seja irreal mas verdadeiro. É por esse motivo que meu tema propõe “a teologia negativa como antídoto do niilismo”.
Chega-se, acredita-se, ao próprio cerne da questão, tal como ela é encarada. Para desatá-la, é preciso primeiro confrontar as noções de “personalismo” e de “niilismo”. Isso será feito à margem de um artigo recente de um dos eminentes colegas filósofos franceses, denunciando, como filósofo indianista, o personalismo do Ocidente como sendo a causa do niilismo.
Receia-se que o mal-entendido seja total. Pois, pelo contrário, vê-se no impessoalismo, na falha, na anulação ou na alienação da pessoa, ao mesmo tempo a causa e a saída do niilismo. A questão é tanto mais grave quanto, no final, coloca em xeque um conceito fundamental para a família das três religiões abraâmicas.
Então é preciso examinar: 1) Qual conceito de pessoa se professa, quando a denunciamos como causa do niilismo? Em outras palavras, o que se entende por personalismo e niilismo? 2) A razão para essa acusação do personalismo parece estar no fato de que se perde de vista o que a tradição abraâmica em seu conjunto (portanto, não apenas ocidental) concebeu como teologia negativa ou apofática. Em outras palavras, o que se entende por teologia apofática e personalismo? Esboçada essa confrontação, pode-se discernir onde está verdadeiramente o niilismo. 4) A partir daí, pode-se opor um princípio de realidade rival à concepção científica solidária do niilismo. É aí mesmo que teremos que ouvir a voz dos filósofos iranianos tradicionais, à frente deles a de Mollâ Sadrâ Shîrâzî (1050/1640).
