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Dubois (DDAG) – O Reconhecimento

DDAG

Mas, se os meios de conhecimento válidos são inoperantes em relação ao Aparecer, para que serve o ensinamento do Reconhecimento, um ensinamento tão complexo que Abhinavagupta se dedicou a explicar durante os melhores anos de sua vida? Esse re-conhecimento, de fato, não é também um meio de conhecimento? Sendo assim, todos esses discursos não são vãos? Não deveríamos antes admitir que o Si “sempre presente” é incognoscível, a não ser por uma Graça ela mesma incompreensível? Esse tipo de objeção é assim formulado:

“Se consideramos que o desejo sem entraves do Bem-aventurado (i.e., do Senhor, Shiva) não sofre por ser objeto de um exame racional, podemos concluir o seguinte: Chega de tanto trabalho com essas ilusões que são a reflexão, a explicação, o discurso e a leitura atenta dos livros: esse fardo pesado deve ser abandonado! Refugiemo-nos no silêncio. Nada além do desejo do Bem-aventurado libertará aquele que deve ser libertado (do “oceano” dos renascimentos, o samsara)!” (PTV p. 43).

Da mesma forma, é uma ideia já bastante antiga na época de Abhinavagupta que basta entregar-se ao Senhor “eternamente Senhor e eternamente libertado” (YGB I, 24, texto Filliozat 2005, p. 76), para ser, por sua vez, libertado por Sua Graça, que é a razão de ser última de toda existência (Ibid., p. 80). De fato, Ele não é anterior mesmo a todos os mestres, já que não é interrompido pelo tempo? (Ib. p. 82: YS, II, 26. Note-se que em todas essas passagens, a acepção de yoga como “cessação do psiquismo” parece ser provisoriamente relegada a segundo plano, para dar lugar àquela, teísta e shaiva, de união do Si individual com o Si último. E Vyāsa, aliás, cita (ad I, 28) um verso que prescreve o zumbido ritual (om, hum, hrīm, etc.) como meio para realizar essa conjunção, conforme o ensinamento da Shvetashvataropanishad.) Então, para que se exaurir em tratados de dialética tão áridos ou em práticas de yoga ou ainda nesses rituais intermináveis que formam a maior parte dos tantras? Finalmente, o ensinamento sobre a “não-via” está situado no início do ensinamento de Abhinavagupta na Luz dos Tantras. Não é, portanto, desajeitado da parte de Abhinavagupta começar assim sua exposição sistemática das práticas de sua religião dizendo que as práticas são inúteis?

A Resposta de Abhinavagupta: O Si como Conhecimento de Si Uma primeira resposta é dada por Utpaladeva, genial formulador do texto base dessa filosofia do Reconhecimento, os Versos para o Reconhecimento de si como sendo o Senhor. Na terceira estância do primeiro capítulo, Utpaladeva formula o essencial de sua mensagem de maneira concisa. Após ter afirmado que o Si-Senhor não pode ser demonstrado nem refutado por nenhuma experiência nem nenhum raciocínio, ele expõe a natureza do caminho que propõe baseando-se na distinção entre o Aparecer (prakāśa) e a consciência deste (vimarśa). Pois o Si não é apenas manifestação ininterrupta. Ele não é apenas da ordem do fato consumado e sempre já consumado. Ele não é apenas o Si, mas é ainda conhecimento de si. Esse conhecimento é um ato de consciência, um reassenhoramento absolutamente soberano, iniciativa incondicionada, sinônimo de ação e, nesse sentido, de prática sagrada, bem como de atividades cotidianas profanas. Ora, quem diz conhecimento diz erro. Se o Si é dotado de consciência, ele pode se enganar sobre a única coisa que existe: ele mesmo. Desse modo, podemos resumir a resposta de Abhinavagupta nos seguintes termos. Há, de fato, apenas um único Aparecer, indivisível no tempo como no espaço, inegável (anapahnīya). Mas, em virtude da influência dos dois modos do Ato de consciência – conhecimento completo ou apenas parcial – há ou a Ciência impura que gera as aparências da existência ordinária, a Māyā, ou a “verdadeira Ciência”, que gera as aparências do “Caminho puro”, os planos de existência onde o Si se reconhece pelo que ele é. Esses termos da teologia shaiva comum designam a experiência do corpo e do mundo em uma perspectiva integral, visão ampliada que é o objetivo do Reconhecimento. O discurso do Reconhecimento é ele mesmo o meio de aperfeiçoar a Ciência, ou seja, a consciência ou o pensamento, para que ela se torne pura novamente, dilatada à medida do Aparecer ilimitado. Em outras palavras, mesmo as interrupções aparentes do Aparecer são, precisamente, aparentes, sem o que não poderíamos falar delas. É por isso que “esse Si, que tem por natureza ser Senhor, aparece sem interrupção, e nisso reside sua liberdade absoluta” (IPV I, p. 57). Mas, porque ele é autônomo no sentido de que pode se conhecer como sendo contínuo ou descontínuo, ele se reassenhora como sendo ora aparente (no estado de vigília, por exemplo), ora como tendo “desaparecido” (durante o sono profundo). É assim, explica-nos Abhinavagupta, que ele assume os papéis distribuídos na escala da hierarquia dos seres, desde Shiva até as criaturas infernais.

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