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Ereignis no Tao (Daniel Charles)

CHerne “Calar uma coisa é deixá-la sem voz. Ouvir o que está sem voz exige uma audição que cada um de nós possui, mas que ninguém sabe bem como usar. Essa audição (Gehör) não depende apenas do ouvido, mas também da pertença (Zugehörigkeit) do homem àquilo com que seu ser está afinado. O homem permanece afinado (gestimmt) com aquilo de onde recebe sua voz (bestimmt): ele é então atingido e chamado por uma voz cuja ressonância é tanto mais pura quanto mais silenciosamente atravessa o ruído das palavras.” (Martin Heidegger, Der Satz vom Grund, p. 96. Trad. fr. por André Préau, O Princípio de Razão, Paris, Gallimard, 1962, p. 129.) Na breve confrontação aqui esboçada entre duas palavras-chave, Ereignis e Tao, não há nenhuma preocupação em “confirmar”, muito menos em “fortalecer” Heidegger com algum “retorno ao Oriente”. Seria antes o contrário: Heidegger nos parece menos “oriental” do que a filosofia dos grandes taoistas — ou sua poesia — é, estranhamente, “heideggeriana”. Se tantos pensadores chineses ou japoneses hoje se reconhecem em Heidegger, se descobrem por ele sua apropriação de si mesmos, é porque sem dúvida o Oriente “só encontra sua verdade na transformação do Ocidente”.

Um dos vocábulos chineses para o ser é shih. É o ser enquanto cópula: só se emprega shih com seu oposto fei, para dizer o verdadeiro e o falso, aprovar e desaprovar, o correto e o incorreto. Isso em referência a uma adaequatio, a um juízo de conivência ou correspondência. Jamais shih se diz na proximidade de tao. Como se tao abrisse um domínio de verdade primeiro, irredutível ao do responder ou corresponder porque desvelador.

O ser do desvelamento e não da adequação, o ser como modo do tao, os chineses o chamam yu. Ora, yu significa primeiro: ter, possuir, apropriar-se. Apropriação. E — só em segundo lugar — existir, ser dado. Datur. Ou ainda: Es gibt.

Evita-se confundir yu com ts’un, a presença persistente ou o presente constante — no sentido em que (metafisicamente?) o tao é dito estar (ou ter estado) presente “antes do céu e da terra” —, a menos que se queira metaforizar, metapherein. Por quê? Porque o oposto de ts’un é wang — a morte ou destruição física —, enquanto o oposto de yu é wu, e indica desapropriação e desapossamento. Ent-eignis: não a perda da existência física ou da presença, o que wang expressa muito bem; mas o Não-ter no sentido forte, o Não-ser como tal.

Ao tratar da diferença entre yu e wu em Wang-pi — autor de um célebre Comentário sobre o Lao-tzu —, Isabelle Robinet sugere traduzir wu, “não fosse o modernismo da expressão, por ser enquanto oposto a ente”.

Sim, mas é o “modernismo”, aqui, que de fato atrapalha. Heidegger não é de modo algum um “moderno” aos nossos olhos; melhor vê-lo, como às vezes se sugeriu, como um “pós-moderno”, desde que expressamente não se tome a “pós-modernidade” como um exagero em relação à modernidade. A tradução de Isabelle Robinet, nesse sentido, não é suficientemente heideggeriana: remetendo à diferença ontológica, ela enfraquece yu como “ente”, quando em Lao-tzu yu liga o ser à nomeação, à Mãe de todas as coisas, à manifestação. E traduzir wu por ser, será isso suficiente para marcar a parte do silêncio, o Sem-nome, o Dizer da origem como Não-dizer, como Calar, como a pura voz do Nada? Yu e wu, a Nomeação e a Des-nomeação, a voz e a não-voz, remetem aos “termos” da diferença ontológica, o ser e o ente, mas apenas na medida em que esses próprios termos são instáveis, abertos, escorregadios; melhor seria admitir que eles já “ultrapassaram”, ou — para evitar qualquer hegelianismo — transgrediram o lugar da diferença. Eles a mobilizam: apropriam-se dela para colocá-la em movimento, fazem dela uma passagem, um caminho, tao. Um puro traço, à maneira do pintor: o “Único traço de pincel” segundo Shitao, abertura do espaço pela voz da caligrafia, voz muda, e que no entanto deve ser ouvida…

Como não pensar nesse gesto do pensamento pelo qual o “último” Heidegger risca, durante o protocolo relatado do seminário sobre Zeit und Sein, a diferença ontológica, em benefício da clivagem do mundo e da coisa?

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