Heidegger, conversas com Tomio Tezuka (Saviani)
Saviani2004
Na primeira parte da entrevista, marcada para discutir o significado atual do cristianismo para a Europa, Heidegger fez perguntas a Tezuka sobre a língua japonesa. “Mais do que algo sobre o japonês”, esclarece Tezuka, “ele quis ouvir o próprio japonês. Transcrevi então em rōmaji (caracteres latinos) e em ideogramas este haiku de Bashō: 'Uma cotovia. / Além, na quietude, / este vale'. e expliquei palavra por palavra. Ele leu silenciosamente minha transcrição em rōmaji. (…) Depois me perguntou: 'Em japonês certamente há uma palavra que designa a linguagem. Que significado tem propriamente essa palavra?' Respondi: 'A palavra sobre a qual me pergunta é koto-ba. Não sou especialista nesse campo, por isso não posso falar com total segurança, mas creio que provavelmente koto remete a koto, que ressoa novamente em kotogara, com o significado de 'coisa' ou 'estado de coisas'. Ba é uma eufonia para ha e isso designa, a meu ver, 'muitos' ou 'espesso'; pode-se ver em ki-no-ha (folha ou folhas de árvore). Se aceitarmos essa interpretação, então koto, linguagem, e koto, coisa ou evento, poderiam ser considerados os dois lados de uma mesma realidade. O evento-coisa resplandece e se converte em koto-ba, linguagem. Talvez a palavra koto-ba nasça de uma concepção semelhante'. Esta explicação correspondeu às expectativas de Heidegger. Enquanto tomava notas num pedaço de papel, disse: 'Interessante! Então a palavra japonesa kotoba significa Ding, coisa'. Esta explicação me pareceu demasiado relativa a um conceito já preconcebido, mas não podia refutá-la. 'Sim, poderia dizer que significa tanto Ding, 'coisa material', como Sache, 'coisa-evento'. 'Ah, você leu minha conferência Das Ding? Nela escrevi algo que tem a ver com tudo isso'” (pp. 174-175).
Em seguida, sobre a sensibilidade artística japonesa, na qual “uma Ding minúscula ou uma Sache insignificante eleva seu significado, seu ser-assim, por estar situada num espaço vasto” e “através do sensível é suscitado o espiritual”, Heidegger perguntou: “Quais são em japonês as palavras correntes que expressam Erscheinung, o fenômeno, e Wesen, a essência? Não me refiro à terminologia técnica. Não se encontram no linguajar habitual as palavras correspondentes?”. Tezuka respondeu: “As palavras para 'essência' e 'fenômeno' não pertencem ao linguajar cotidiano. Originariamente são termos budistas, portanto palavras empregadas conscientemente na meditação. No entanto, como essas palavras soam familiares há muito tempo ao coração dos japoneses e se tornaram palavras correntes, a meu ver, são bastante próximas da linguagem comum. São shiki e kū. Shiki indica o fenômeno e kū a essência em geral. Porém, no pensamento budista, como também no pensamento dos japoneses, que mantém certa afinidade com o pensamento budista, kū e shiki são concebidos certamente como opostos mas, ao mesmo tempo, como o mesmo. Esta concepção, mais que numa ideia filosófica, penetrou natural e espontaneamente no ânimo do povo comum. Por isso, estas palavras constituem a resposta à sua pergunta. Na base desta concepção está o modo de pensar 'shiki é ao mesmo tempo kū, kū é ao mesmo tempo shiki'. Este modo de pensar calou profundamente no fundo de nossa consciência. Para esclarecer com mais detalhe o significado dessas palavras, shiki significa cor, tinta, e portanto, fenômeno. Kū significa, no fundo, Leere, o vazio, mas também Himmel, o céu, e das Offene, o aberto (o mundo aberto). Se, por um lado, kū deve ser entendido como o nada vazio, por outro, este vazio não designa simplesmente algo negativo, mas sim o modo de ser originário de tudo, a condição ideal à qual devemos aspirar. O budismo presta atenção particular à consciência desse nada. O caráter simbólico da arte japonesa ao qual me referia antes simboliza, em última instância, precisamente kū. Quando se obtém, o resultado é considerado plenamente alcançado. Quando shiki está junto a kū, shiki começa a se aproximar de seu caráter essencial. Nossos modos tradicionais de pensar e sentir parecem consistir em perceber esse caráter essencial, uma percepção que se orienta para esse vazio do nada, ou seja, para essa indeterminação. Antes, professor, o senhor falou do caráter metafísico da arte japonesa. Nessa indeterminação tem precisamente dito caráter metafísico seu traço essencial. Em suma, a arte japonesa é, em certo sentido, uma arte do espaço” (p. 176). Depois, prossegue Tezuka, falou-se sobre o filme Rashomon, do qual Heidegger quis saber qual era sua fonte literária e que definiu como interessante. Diz Tezuka: “O tipo de indeterminação que este filme mostra acerca do conhecimento da realidade talvez pudesse ter lhe interessado como um traço oriental. Se esta obra pode ou não ser considerada uma representação pura do caráter oriental é outra questão” (p. 177).
“Assim, na primeira parte da conversa com Heidegger, tive que responder a sua enxurrada de perguntas. Pela forma como formulava as perguntas, podia perceber para onde se dirigia seu interesse. Por exemplo, quando propus das Offene como possível tradução de kū, tive a sensação de que a ele, intérprete de Hölderlin e Rilke, agradaria; de fato, ficou satisfeito. Disse ainda: 'É nessa profundidade que Oriente e Ocidente devem dialogar. É insignificante conceder uma entrevista seguindo simplesmente a atualidade'” (p. 177). A primeira parte da conversa concluiu com uma discussão sobre o ensaio de Heidegger “Wozu Dichter?”, sobre Hölderlin, Rilke e a figura do “poeta em tempos de indigência”. Diz Tezuka: “Heidegger nesse ensaio considera Rilke, como Hölderlin, um 'poeta em tempos de indigência' e um 'poeta do amor', mas no final, como se tivesse reservas, se expressa de modo pouco claro e escreve: '(…) se Rilke é “poeta em tempos de indigência”'. Perguntei a Heidegger: 'Professor, o senhor tinha algum motivo para escrever “se”?'. Heidegger pegou um exemplar de Holzwege, onde está contido o ensaio, e abriu no trecho em questão. 'Aqui está', disse. Depois concordou com minha pergunta: 'Sim, aqui evitei um juízo definitivo e deixei offen, aberto, o problema. (…) Sobre Rilke devo refletir de forma ainda mais radical'” (p. 178).
Na segunda parte da conversa, Tezuka retomou seu principal interesse e perguntou a Heidegger sua opinião sobre a relação entre a civilização europeia atual e o cristianismo.
É notável neste texto a perplexidade manifestada por Heidegger em relação à força propulsora do cristianismo na Europa da época (1954); Heidegger definiu o cristianismo como “aburguesado”, a expressão de uma “religiosidade convencional” e carente da força de uma “fé viva”, a qual permaneceria presente “ainda no povo italiano” (p. 179).
