Heidegger e Lao Tzu (Saviani)
Saviani2004
Se a longa dedicação de Heidegger ao Chuang-tzu é atestada por episódios esporádicos, seu confronto com o “pensamento poetizante” de Lao-tzu revela-se ainda mais significativo e abrangente.
Devemos sobretudo a Paul Shih-yi Hsiao (1911-1986) o testemunho desse profundo interesse. Estudioso chinês de filosofia e psicologia, desde 1938 estabelecera-se na Europa, onde frequentou cursos de filosofia em Milão e Friburgo, publicou em 1941 pela editora Laterza uma tradução italiana do Tao Te Ching e lecionou de 1955 a 1969 língua e filosofia chinesas na Universidade de Friburgo. De 1974 a 1986, ano de sua morte, ensinou Filosofia na Universidade de Taipei.
No já citado Erinnerung an Martin Heidegger, Hsiao deixou-nos uma reminiscência intitulada “Wir trafen uns am Holzmarktplatz” (apêndice), onde relata a experiência da tradução para o alemão do Tao Te Ching na qual se envolveu a pedido de Heidegger. Outra contribuição de Hsiao foi publicada, em tradução inglesa, com o título “Heidegger and Our Translation of the Tao Te Ching” no volume coletivo Heidegger and Asian Thought, editado por G. Parkes e publicado pela Universidade do Havaí em 1987. Embora seja uma reelaboração da reminiscência publicada dez anos antes, preferimos nos referir a este último texto por sua maior precisão. Além disso, ao cotejar ambos os textos, percebe-se um juízo muito preciso no de 1977 que Hsiao não retomou posteriormente: “A concepção de Lao-tzu de 'wu', do Nada , e sua aversão a qualquer tipo de racionalismo correspondiam às ideias de Heidegger” (Erinnerung an Martin Heidegger, p. 127). Como apêndice à reminiscência de 1987, Hsiao publica uma breve carta que Heidegger lhe enviou em 1947.
Hsiao relata: “Soube do interesse de Heidegger por uma tradução do Tao Te Ching de Lao-tzu na primavera de 1946, durante nosso encontro na Holzmarktplatz de Friburgo. Foi então que ele me propôs colaborar numa tradução do Tao Te Ching para o alemão, durante o verão, em sua cabana em Todnauberg, pois só então teria uma pausa em seu trabalho. Aceitei entusiasmado, convencido de que as ideias de Lao-tzu contribuiriam para oferecer aos alemães, e, no fundo, a todo o mundo ocidental, uma oportunidade de reflexão após a catastrófica Guerra Mundial. Infelizmente, não concluímos o projeto; ainda assim, creio que aquele trabalho exerceu uma influência significativa sobre Heidegger. Ele mesmo disse certa vez a um amigo alemão que, ao dedicar-se a Lao-tzu, assim como a Confúcio e Mêncio, aprendera algo mais sobre o Oriente” (p. 93). Hsiao conhecera Heidegger em 1942, quando a Universidade do Sagrado Coração de Milão, onde aprofundava seus estudos de filosofia, permitiu-lhe assistir como ouvinte a seus seminários em Friburgo. Hsiao prossegue: “De vez em quando, eu lhe apresentava fragmentos de minha tradução do Tao Te Ching para o italiano, cuja publicação fora possibilitada por Benedetto Croce. Provavelmente, em minha tradução, Heidegger encontrou algo que não havia visto em outras, pois do contrário não me teria proposto depois que colaborássemos numa tradução para o alemão” (p. 93). Heidegger fez a proposta a Hsiao em 1946 na antiga Holzmarktplatz de Friburgo, entre os escombros que ainda cercavam a esplêndida catedral gótica. Na época, Heidegger estava submetido ao processo de desnazificação e queixou-se disso a Hsiao, que recorda: “Em minha perplexidade, vieram em meu auxílio algumas palavras consoladoras de Mêncio (372-293 a.C.), o maior confucionista depois de Confúcio (551-479 a.C.). (…) 'Quando o Céu está prestes a conferir a um homem grandes responsabilidades, certamente primeiro atormenta seu coração e sua vontade, fatiga seus músculos e ossos, faz passar fome a seu corpo, empobrece sua pessoa, transtorna seus empreendimentos: assim estimula seu coração, tempera seu caráter e repara sua incapacidade. (…) Só depois se compreende que a vida ocorre na dor e nas preocupações, e a morte, na tranquilidade e nos prazeres'. Heidegger pareceu um tanto impressionado com essa citação. Daí em diante não falamos mais sobre o assunto. Foi precisamente durante esse encontro que ele me propôs traduzirmos juntos o Lao-tzu. Aceitei a proposta com prazer” (p. 96). Richard Wilhelm publicara em 1911 uma tradução do Tao Te Ching, e em 1923, do I Ching.
Assim, no início do verão de 1946, iniciou-se a tarefa conjunta de tradução, que se prolongou por toda a estação. Todos os sábados, Hsiao chegava de motocicleta à cabana de Heidegger em Todnauberg. Ele continua seu relato: “No início, nosso trabalho de tradução partia do Lao-tzu editado por Chiang-Hsi-Chang, baseado na comparação de outros oitenta e quatro textos antigos, que podia ser adotado provisoriamente como texto crítico. Não consultamos outras traduções e comentários, pois queríamos oferecer uma interpretação do Tao Te Ching o mais fiel possível ao pensamento de Lao-tzu. Começamos pelos capítulos relativos ao tao, os mais difíceis e importantes. Devido à natureza extremamente meticulosa do pensamento de Heidegger, ao final do verão havíamos trabalhado apenas em oito dos oitenta e um capítulos no total. (…) Presumivelmente, teríamos levado cerca de uma década para concluir; ou talvez menos, pois os demais capítulos não são tão obscuros, e Heidegger já não sentiria a necessidade de me interrogar tão minuciosamente, escrutinando-me com seu olhar inquisitivo e sempre atento. (…) Queríamos continuar nosso trabalho no verão seguinte. (…) Depois do verão de 1946, nunca mais retomamos nossa colaboração” (pp. 97-98). Hsiao decidiu não continuar e dedicou-se a dar uma série de palestras em universidades europeias sobre pensamento comparado, ocidental e chinês. Na verdade, reconhece Hsiao, já durante o trabalho em comum não conseguia livrar-se do temor de que “as anotações de Heidegger talvez pudessem ir além do exigido por uma tradução” (p. 98). Além de uma breve carta de outubro de 1947, na qual escreveu duas linhas do capítulo XV, lembra Hsiao, Heidegger não lhe transmitiu nenhuma outra tentativa de tradução. “Assim, só me resta a esperança de que suas anotações contidas nos escritos póstumos possam vir à luz enquanto eu ainda viva. Depois do verão de 1946, nunca mais retomamos nossa colaboração. Uma vez, nos anos 1960, quando um amigo com quem visitei Heidegger mencionou o Lao-tzu, ele apontou o dedo para mim com certa emoção e, ao mesmo tempo, com um sorriso, e disse: 'Mas foi ele quem não quis fazer'. Eu também sorri, envergonhado” (p. 98). Certamente, afirma Hsiao, “embora os oito capítulos traduzidos constituam apenas uma pequena parte do Tao Te Ching, exerceram uma influência significativa em Heidegger” (ibid.).
No relato de Hsiao, há um episódio muito eloquente. Um industrial amigo seu, em um encontro com Heidegger em Todnauberg obtido após muita insistência, dizia achar o Lao-tzu incompreensível e citava alguns trechos: “Quando o grande Tao foi esquecido / inventaram-se a humanidade e a justiça” (cap. XVIII), “Um exército forte / se destrói a si mesmo / a madeira forte se quebra” (cap. LXXVI), “O sábio / põe seu corpo para fora e conserva o corpo / não é porque ele não é egoísta? / Por isso pode cumprir seu interesse” (cap. VII). “'Por que os chineses falam desse modo?' Tive a impressão de que a pergunta era dirigida a mim e, por isso, após esperar um pouco, disse: 'Porque os chineses daquela época não conheciam a lógica aristotélica'. 'Graças a Deus, não!', retrucou espontaneamente Heidegger” (p. 99).
Das traduções feitas por Heidegger, Hsiao menciona apenas duas linhas do capítulo XV que, segundo ele, traduzidas literalmente, dizem: “Quem pode, aquietando, esclarecer lentamente o turvo? Quem pode, movendo, reavivar lentamente a calma?” (p. 100). De fato, reencontramos a tradução de Heidegger em sua carta de 1º/12/1963 a Erhart Kästner: “Mas quem é capaz de esclarecer uma água turva com a atenção à quietude? Quem é capaz de gerar a paz com a atenção ao movimento contínuo?”. Heidegger, recorda Hsiao, foi além da letra, dizendo que o esclarecer no final traz algo à luz, e o movimento imperceptível na quietude e no imóvel pode levar algo ao ser. Heidegger pediu-lhe que escrevesse duas linhas de oito caracteres cada uma em um pergaminho; “o tao do céu”, que não aparece no texto, ele escreveu no centro como decoração, dando em seguida uma explicação etimológica detalhada de cada caractere para que Heidegger pudesse compreender tudo até o último detalhe.
Concluindo a apresentação do testemunho de Hsiao, mencionamos a carta de Heidegger de 1947, já referida, da qual Hsiao publica uma cópia no “Apêndice” de sua contribuição em Heidegger and Asian Thought. Na breve carta, Heidegger tentara uma tradução do capítulo XV (pp. 102-103).
Isso pode ser considerado também um sinal do interesse nem ocasional nem efêmero que o pensador teve pelo taoísmo. Nem tampouco limitado ao grave estado de crise psicológica que Heidegger atravessou em 1945-46.
Eis o conteúdo da carta:
Cabana, 9-10-1947
Caro Sr. Hsiao:
Penso frequentemente em você. Espero que em breve possamos retomar nossos encontros. Volto a refletir sobre os versos que você me transcreveu:
“Quem pode permanecer quieto e, da quietude e através dela, levar ao caminho (encaminhar) algo, de modo que compareça?”
(Quem é capaz, aquietando, de levar algo ao ser?) O Tao do céu.
Saúdo-o cordialmente.
Seu, Martin Heidegger
Também em sua apaixonada biografia, H. W. Petzet dedica um capítulo inteiro, “Der Mönch aus Bangkok” , ao interesse que Heidegger cultivou por toda a vida pela cultura do Extremo Oriente. Na conclusão do capítulo (p. 191), declara ter tido notícia da tentativa de tradução do Tao Te Ching apenas após a morte de Heidegger. Por outro lado, cita um episódio de especial interesse para nós: numa carta enviada a Ernst Jünger em 1966, quando este último estava prestes a empreender sua viagem ao Extremo Oriente, Heidegger acrescentou um fragmento do Tao Te Ching, o capítulo XLVII. Por não reproduzir a tradução alemã corrente de R. Wilhelm, Petzet supõe que a versão seja do próprio Heidegger: “Não sair pela porta / e conhecer o mundo. / Não estar diante da janela / e ver todo o céu. / Muito longe se vai, / muito pouco se sabe. / Por isso o sábio / não viaja, / e, no entanto, conhece, / não olha, / e, no entanto, louva, / não age, / e, no entanto, cumpre”.
