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Nada, o digno de ser questionado (Morillas)

Morillas2003

o nada, segundo Heidegger, sim pertence ao ser, que é o digno de ser questionado. Como ser e nada são “o mesmo”, o esquecimento niilista ocidental do ser tem que ser também um esquecimento do nada. Por isso, superar o niilismo do Ocidente requer retomar a pergunta do nada como aquilo que pertence intimamente ao se apresentar do ser ou ao essenciar-se de sua desocultação: “(É necessário) levar expressamente a investigação pelo ser ao limite do nada e incorporar a este na questão do ser”. Desde a nova perspectiva adquirida, o homem, o “aí” do ser, aparece inclusive como o “lugarteniente” (Platzhalter) do nada, e não mais como mero indagador e manipulador do ente. Por isso, Heidegger se distancia explicitamente das leituras niilistas de suas reflexões acerca do nada. Assim o confessa em carta a um colega japonês, onde, a propósito da excelente recepção da conferência WM (1929) no Japão, escreve: “Essa conferência, que se traduziu ao japonês tão rápido como em 1930, se entendeu imediatamente em seu país, em contraste com a má compreensão niilista do que eu havia dito (sobre o nada) que prevalece até hoje na Europa. O nada de que se fala ali se refere àquilo que, em relação ao ente, nunca é nenhum tipo de ente e não 'é', por isso, nada, mas que, no entanto, determina o ente como tal e se chama, por isso, ser”.

Ora, sabemos que no Oriente também se viu desde tempos antigos o nada (ou o vazio) como pertencente ao ser, e mais ainda, como a plenitude do ser. Isso ocorre com toda clareza no taoísmo. Por exemplo, no Capítulo 2 do Dao-de-jing afirma-se: “O ser (you) e o nada (wu) se originam mutuamente (xiang sheng)”. O tradutor para o alemão da edição que Heidegger utilizava, von Strauss, comenta neste ponto: “Um é ou chega a ser somente por meio do outro”. No Capítulo 40 da mesma obra precisa-se: “Todas as coisas (wan wu) se originam (sheng) do ser (you), e o ser (you) se origina (sheng) do nada (wu)”. E Martin Buber, em sua edição do Zhuang-zhi (da qual Heidegger inclusive recitava determinadas passagens), comenta literalmente a possibilidade de um projeto de superação da “sabedoria tradicional mediante o ensino do 'não-ser' (Nichtsein), tal como Lao-zi fez na China”. Esta sugestão bem pode ter confirmado Heidegger em sua ideia de propiciar a superação do niilismo do Ocidente por meio da reflexão sobre o nada, repetindo à sua maneira Lao-zi. Sabe-se que Heidegger também teve acesso ao taoísmo através de sua leitura de Schelling, que sintetiza sua compreensão da concepção laoziana do Tao nos seguintes termos: “A grande arte ou sabedoria da vida consiste justamente em manter essa pura capacidade que é ao mesmo tempo nada (Nichts) e tudo. O Tao-te-king inteiro tenta mostrar… o grandioso e insuperável poder do não-ser (des nicht Seyenden).

O mesmo ocorre no budismo mahayana, particularmente com o zen, que também pode ser apresentado como uma filosofia do nada. O budismo considera um “infiel” o homem lançado na pura praticidade da vida, perdido nos entes. Assim, na tradução e seleção de textos do budismo zen para o alemão feita por Ohazama, destacam-se dois fragmentos importantes, conhecidos por Heidegger. No Sin-sin-ming (“O selo da fé”) de Seng-tsan, que bebe diretamente da fonte das sutras Prajña-paramita mahayânicas, lê-se: “O ser não é nada distinto do nada, o nada não é nada distinto do ser”. E no Shodoka (“Hino à experiência do caminho”) de Hsüan-chüeh acrescenta-se: “O nada é tudo, e tudo é o nada levado à sua completude”. Estes antigos textos taoístas e budistas eram bem conhecidos por Heidegger, como também lhe era familiar a conhecida fórmula de seu contemporâneo, o filósofo japonês Nishida Kitaro: “O ser é o nada, o nada é o ser”. A concepção heideggeriana do nada, além disso, mostra pontos de contato com as teses do budismo mahayana em outro aspecto importante: a unidade do nada e o ente em sua totalidade (das Seiende im Ganzen). Assim se aprecia nestes dois importantes textos de WM: “O nada se encontra na angústia junto com os entes em sua totalidade” (Das Nichts begegnet in der Angst in eins mit dem Seienden im Ganzen); e: “O nada se anuncia mais precisamente com e no ente como o que reluz no todo” (Vielmehr bekundet sich das Nichts eigens mit und an dem Seienden als einem entgleitenden im Ganzen).

Justapondo os textos mais relevantes, conclui-se que a interpretação heideggeriana do nada converge com as fontes taoístas e zen. Assim, a afirmação referente ao ser e ao nada do comentário de von Strauss ao livro de Lao-zi: “Um é… somente por meio do outro” (Das eine durch das andere erst ist) corresponde a estas afirmações de Heidegger: “O outro (do ser) é apenas o nada” (Das Andere zu (dem Sein) ist nur das Nichts); e: “O ser e o nada não se dão um ao lado do outro. Cada um se usa a si mesmo para o outro” (Sein und Nichts gibt es nicht nebeneinander. Eines verwendet sich für das Andere). E a tese de que “o ser não é nada distinto do nada, o nada não é nada distinto do ser” (Sein ist nichts anderes als Nichts, Nichts ist nichts anderes als Sein) da seleção de Ohazama sobre o zen corresponde às expressões fundamentais anteriormente mencionadas: “O nada como o 'ser'” (Nichts als “Sein”); “Nada e ser: o mesmo” (Nichts und Sein: das Selbe); e: “Ser: nada: o mesmo” (Sein: Nichts: Selbes).

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