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Ibn Ata’allah – Amor e ódio

SkaliTL

“Diga-me, ó sábio, qual a origem do ódio? Como o coração do homem pode suportar ser invadido por sua agitação? Como pode ele abrigar esse inimigo traiçoeiro que só traz miséria e destruição?” Só conhece a paz, ó amigo, aquele cujo coração não tem ódio. Mas este elegeu morada no coração dos homens porque é por ele que se mantém a existência das formas. Toda forma definida é ameaçada de destruição. Toda ameaça suscita ódio e cólera. Para superar o ódio, é preciso ir à raiz de todas as formas, neste lugar secreto onde a luz do amor desponta. Desse lugar, ó amigo, jorra a centelha divina. Só ela pode vencer a lei da necessidade em que as formas se inscrevem. Aquela de sua ação e reação, de sua causa e efeito, de sua afirmação e negação, de sua vitória e aniquilamento. Aquele que alcançou a raiz do ser compreende que, para além da multidão das formas, e através delas, apenas as qualidades da perfeição estão em ação. É este segredo, ó amigo, que os homens do amor carregam em seus corações neste mundo de desolação:

Nas lágrimas do amor No fogo do ódio A cólera dos dias ou a paz reencontrada No homem submisso e no rebelde Nas almas em ruínas e nos corações exaltados, As formas se unem, se renovam, Sob a única tirania de Sua beleza. As formas, ó amigo, escondem ao mesmo tempo o que revelam. São um véu e uma porta de acesso. Se o seu olhar é aguçado, a forma não o velará de sua raiz, nem a imagem de sua beleza. Mas só o amor poderá levá-lo em suas asas para além de seus próprios limites e dos limites deste mundo. Só o amor, ó amigo, desafia todas as leis e todas as regras e o faz chegar ao céu puro da liberdade. As leis da terra, ó amigo, são marcos necessários para aqueles que caminham. Mas o pássaro ébrio de amor voa em um espaço infinito sem rastros nem referências. O sábio, contudo, enquanto está neste mundo, compartilha com todos os seres criados as leis e as regras divinas em que as formas se inscrevem. Seu espírito está ligado ao seu corpo como uma criança que seguraria uma águia por um fio tênue. Seu corpo está entre os homens, mas seu coração banha-se no mundo das verdades. A busca do apaixonado, assim como a do amor, não tem limites. Aquele cujo coração foi aniquilado por um único olhar está condenado a uma erração sem fim. Cada um de seus olhares é um teriaga Um enxofre vermelho, um elixir, Cada um de seus sorrisos ilumina os universos Você colocou em meu coração o bálsamo de Sua Beleza E jogou sobre sua ferida o sal de Seu Mistério.

“Diga-me então, ó sábio, diga-me como a visão de tal beleza surge no coração do homem?” Como uma pérola branca depositada na concha da alma. Radiante da luz de seu próprio esplendor e cujos múltiplos brilhos são tantos olhares que reduzem a cinzas todos os que ousam se aproximar. Aquele que recebeu tal relâmpago, emanando do céu de sua alma, esse, chorem por ele, ó amigos, pois não conhecerá mais descanso nem paz. Mas deixem também seus corações se dilatarem, pois é em seu próprio inferno que se encontra seu paraíso. Se um de seus raios tocasse uma forma exterior, sem dúvida muitos seriam os que, no lugar de Deus, quereriam adorá-lo. Se tais olhares jorrassem dos olhos de um humano, aqueles que o vissem poderiam, como as mulheres do Egito maravilhadas com José, se mutilar. A essência da beleza, ó amigo, habita seu coração. É a alma e o espírito de toda beleza exterior. A seus cabelos desgrenhados responde, na brancura de sua bochecha, a pinta. Ouça nascer em você este raio de mel. Deixe-o prendê-lo na rede de seus encantos, deixe-o revelar-lhe o que nenhum ouvido ouviu, que nenhum olho viu, que nenhuma imaginação concebeu. Aquele que a sombra desta silhueta um dia atravessou não é mais do que uma alma errante que nenhum remédio poderia acalmar, uma alma em sofrimento em busca de rastros desaparecidos, um louco hirsuto a quem as crianças atiram pedras na rua. Ouça, ó amigo, no fundo de você, o canto pelo qual ela o chama. Não tema enfrentar, no navio de sua alma, o rugido das ondas. Não tema afundar-se nesta noite sem falhas onde a escuridão do céu se une à do mar. Deixe-se levar por esta melodia divina mais pura e mais sutil que o mais perfeito silêncio. Deixe nesta viagem para o desconhecido o amor ser seu único guia. Abandone a gravidade da prudência e da razão e responda apenas à sua única voz. É no espaço abolido, no fundo do abismo, que você verá despontar esta pérola como um raio de lua. Suas esperanças não serão decepcionadas. Seus olhos voltados para trás serão mergulhados no pavor, e para frente em uma doçura infinita. Sua alma estará então inebriada pela exaltação dos heróis e estará pronta para atravessar sete mares semelhantes por um simples reflexo dessa luz. Ó amigo, o que mais eu lhe diria sobre a beleza? Que língua saberia evocá-la? Para dizê-lo, é preciso ter se prostrado longamente no santuário do amor e saborear uma a uma as taças de seus olhares. Lágrimas aquecidas pelo fogo interior correm em abundância sobre as bochechas do amante. Nela se aliam a felicidade e a dor, o sofrimento à plenitude e ao transbordamento. Todas essas palavras, contudo, dizem pouco dos danos e desordens que ela causa a cada instante.

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