Ibn Ata’allah – Doenças da Alma
SkaliTL “As doenças da alma, ó amigo, são inumeráveis e se tivesses que apagá-las uma a uma, mil vidas não seriam suficientes. Mas é precisamente a essa tarefa que deves te dedicar como a uma forma de oração. Cada defeito apagado te aproxima de tua realidade primordial. Porém, certamente não serás tu mesmo a te curar. Pois como poderia o mal ser curado por sua própria fonte? Cuidado para não substituir erros grosseiros por outros mais sutis. Existem fomes mais perigosas que as satisfações, e deliciosos alimentos que são veneno mortal. Se queres, ó amigo, acessar o ilimitado, detém-te em tuas próprias limitações. Se queres sair de ti mesmo, é preciso perceber tuas próprias fronteiras. A busca de teus defeitos é preferível à procura das coisas invisíveis que te são veladas. (Hikam) Sabe, ó amigo, que se teu corpo te atrai para o mundo sensível e material, tua alma te acorrenta com laços invisíveis: orgulho, inveja, cobiça são alguns de seus múltiplos ramos. O desejo secreto ou revelado de pertencer às elites, a vontade de ser reconhecido e dominar, de discorrer sobre conhecimentos sutis e elevados. Mas o próprio espírito, ó amigo, não está isento de falhas. E na medida em que a alma se eleva, estes tornam-se mais difíceis de perceber. A busca por milagres, alegrias e felicidades, pelos graus do conhecimento e revelação de mistérios. Tudo isso não passa de procissão de véus que se erguem diante da Verdade. Se te deixasses atrair por essa suave inclinação, nasceria em tua alma um orgulho comparado ao qual o dos poderosos deste mundo seria pálido reflexo. Quando o faraó de tua alma despertar, pretenderá à divindade! A Verdade que buscas, ó amigo, está sempre além de ti mesmo. É Ela que te espera e te guia. Só Ela poderá te aproximar d'Ela mesma. O que fizeres por ti será apenas nova fonte de pretensão. Escuta-A, ó amigo, em cada instante. Vê-A manifestar-se em todas as coisas. Compreende por Ela, age por Ela. Contempla Sua obra em todos teus atos e palavras. Não há ser no universo que não celebre Seus louvores. Todos só falam de Sua Beleza. Donde vem então, ó amigo, essa cegueira? Ó amigo, abandona neste instante Todas tuas vãs vestimentas Pela nobre e pura vestimenta Dos pobres e mendicantes. “Minha alma, ó sábio, está confusa, tantas questões me inquietam. Tantas angústias também. Parece presa a nós que se apertam quando tenta se libertar. Mostra-me, ó companheiro, a sabedoria que poderá desatá-los. Ouvi dizer que o escravo envelhecido na servidão acaba por ser libertado por seu senhor. Devo então suportar pacientemente meus laços ou continuar lutando?” Cada nó, ó amigo, é um ídolo ao qual permaneces apegado. Cada nó é parte de tua alma que se prostra ante um falso deus. O conjunto desses nós te prende a teu ídolo supremo, que não é outro senão ti mesmo. Cessa então de trabalhar para te embelezar e aperfeiçoar com o único fim de te adorar. Cessa de querer, por tuas pretensas virtudes, escravizar a humanidade. Como Abraão, corta teus nós um a um, sabendo que não é pelo ídolo de teu ego que esta obra se realiza. Nada do que queres obter para teu Senhor é difícil Nada é fácil do que queres obter por ti mesmo. (Hikam) Teu “eu” é impotente e escravizado. Quando compreenderes isso, poderás aspirar a cortar o laço de tuas últimas ilusões. Entenderás que no fundo de tua alma há um segredo. Um espaço de liberdade e inspiração. É por essa ponta fina do espírito que falas ao Amado e Ele te responde. É Ele mesmo que te levará ao término de uma noite sagrada onde branco e negro trocam de cores, onde o alto se torna baixo, onde os opostos se unem. Aquele que conhece a Verdade a vê em todas as coisas, Aquele que se aniquilou n'Ela torna-se ausente a tudo E aquele que A ama nada Lhe pode preferir. (Hikam) Os caminhos de Seu chamado são múltiplos. Pode ser pela doação de tuas obras ou pelo amor. Pode te conduzir pelo rigor ou pela doçura de Seus benefícios. Duas coisas, ó amigo, podem sacudir o jugo que te oprime: um temor terrível ou um desejo palpitante. Se queres, ó amigo, dar todas as chances de sucesso a tua busca, procura tornar cada vez mais pura a intenção primordial que fez de ti um viajante. Os sinais do sucesso nas etapas finais Estão em voltar a Deus nos começos. Aquele cujo início foi iluminado Terá também o fim iluminado. (Hikam) Assegura-te de que neste caminho não peças nada além da Verdade. Sabe, ó amigo, que diante d'Ela, as artimanhas não te trarão proveito. É a Verdade, ó amigo, que dá ser a todas as coisas. É Ela que cria e guia. É por Ela que céus e terra participam de uma única harmonia. Escuta por Ela, ó amigo, e ouvirás a estranha e profunda sinfonia do universo. Não procures fazer, mas apenas receber; não procures roubar o que te é oferecido. Descansa tua alma de suas preocupações, O que outro assume por ti Não o faças por ti mesmo. (Hikam) Mas não penses que este caminho é de passividade. Deves estar atento e ouvir. O desapego a teus pensamentos te permite ser melhor iluminado, mas até contemplares a Realidade, persiste em teu esforço: Se hesitares entre duas coisas, escolhe a mais pesada para a alma, Pois só o verdadeiro lhe pesa. (Hikam) Para cada uma de tuas doenças, aplica o antídoto adequado. Contra a inveja, refresca teu olho na fonte da doação. Contra a avareza, cultiva um coração grato. Contra o desejo de celebridade, busca uma vida obscura. Contra a satisfação consigo mesmo, uma sede ilimitada. Contra a inconsciência, faz da morte uma amiga e da invocação tua aliada. Contra a precipitação, reveste-te de bela paciência… até o momento, ó amigo, em que tuas qualidades não forem mais fruto do esforço, mas da contemplação. Serão para ti janelas abertas para a eternidade. Não confundas, porém, esforço e artifício. O primeiro é expressão de teu pedido, o segundo apenas mentira e ilusão. Melhor, ó amigo, um erro que te aproxime de tua verdade que uma virtude que te afaste. O véu da escuridão cria, certamente, no viajante o desejo de escapar. Que dizer então do véu da luz! Tens mais necessidade de Sua clemência Quando Lhe obedeces Que quando Lhe desobedeces. (Hikam) Por vezes, as luzes se tornam obstáculo aos corações Como a alma é velada pela espessura das alterações. (Hikam) Neste caminho, ó amigo, queres te tornar perfeito. Mas o que te vela à perfeição é a própria ideia que dela fazes. Cessa, ó tu que buscas a Verdade, de querer ser santo, pois isso mesmo te impede de ver como és. Tua santidade, ó amigo, consiste em seres mais astuto que o demônio, pois só assim poderás desarmar seus artifícios. Não penses haver incoerência em minhas palavras, pois a astúcia é vã diante da Verdade, mas te será grande auxílio contra a ilusão. Escuta, ó amigo, esta história e compreende! O eremita, o leão e a raposa: Um velho eremita descia da montanha após vinte anos de retiro, jejum e orações. Ao chegar na planície, viu um leão preso numa armadilha. Como o santo homem adquirira o dom das línguas, ouviu o leão suplicar por ajuda. Movido por compaixão, soltou-o. Mas ao ser libertado, o leão voltou-se contra seu salvador, agradecendo não só pela liberdade, mas por oferecer-se como refeição. Argumentou que estava faminto após dias preso. O eremita percebeu seu erro e protestou: “Se não te tivesse libertado, terias morrido de fome! Mesmo sem me devorar, agora podes caçar. Fui instrumento da Providência - por que me destruir?” O leão, embaraçado, buscava um argumento quando uma raposa apareceu. O eremita a tomou por juiz. O leão, confiante na submissão da raposa, aceitou. A astuta raposa fingiu-se de tola: “Não compreendo… quem estava na armadilha? O eremita? Ah, não, era vossa majestade…”. Fez reconstituir a cena minuciosamente até ordenar: “Deveis voltar à armadilha exatamente como estavam!” Quando o leão se recolocou na armadilha, a raposa disparou: “Aí é onde deveríeis ter permanecido!” E disse ao eremita: “Ó santo homem, aprendestes hoje que vinte anos de ascese são inúteis sem o conhecimento para preservar seu fruto.” Ó amigo, quando teu leão interior rugir, só a astúcia poderá dominá-lo. Com olho atento e corpo imóvel, espera o momento favorável. Age então como águia sobre a presa, e uma vez capturada, não a soltes. Mas não te ensoberbeças, ou tua vigilância falhará. Reconhece a graça da inspiração que, além de tua escolha, te permitiu agir no momento certo. Sê humilde, ó amigo, e não subestimes aquele que jurou te perder. Sê humilde e paciente, previne seus ardís, mas sabe que ainda te vencerá muitas vezes. Transforma cada nova artimanha em meio para circunscrevê-lo. Só quando perceberes a forma de teu ego poderás te libertar dele.
