A "Queda" para Jung (Kastrup)
Kastrup2021
Jung faz referências ocasionais à Queda bíblica do Homem – a ingestão do fruto proibido da árvore do conhecimento no paraíso – como um símbolo do desenvolvimento da consciência. Essa aparentemente inocente referência mítica evoca eventos seminais de nossa pré-história; eventos misteriosos que continuam a reverberar hoje, pois são a fonte primordial não apenas de nossas capacidades cognitivas únicas entre os animais, mas também de nosso sofrimento. Elaborarei sobre tudo isso no que segue.
Uma passagem inicial e relativamente extensa onde Jung faz referência à Queda bíblica pode ser encontrada em um ensaio intitulado “Os Estágios da Vida”. Tendo definido “problemas” como “coisas difíceis, questionáveis ou ambíguas”, ele continua: “É ao crescimento da consciência que devemos agradecer pela existência de problemas… Enquanto ainda estamos submersos na natureza, somos inconscientes e vivemos na segurança do instinto, que não conhece problemas.” Animais instintivos não enfrentam dilemas ou escolhas difíceis; em vez disso, o instinto sempre lhes fornece um caminho claro a seguir. Eles não questionam a si mesmos, não se arrependem de escolhas passadas ou sentem ansiedade sobre situações futuras. Ao operar puramente por instinto, eles são um com a natureza e não sentem tensão interior. Só nós, seres humanos conscientes, fazemos todas essas coisas, pois “nos afastamos da orientação segura do instinto e fomos entregues ao medo”. A consciência é o que nos faz sofrer. O desenvolvimento da consciência “é o sacrifício do homem meramente natural – do ser inconsciente e ingênuo… A queda bíblica do homem apresenta o despertar da consciência como uma maldição.” Esta é uma passagem extraordinária. Jung está dizendo que atingir a consciência – a Queda do Homem – é uma maldição, que ele mais tarde caracteriza como nosso sacrifício a Deus, para ajudar Deus a desenvolver a autorreflexão. A implicação não dita é que, na medida em que o diabo enganou Adão e Eva para morderem o fruto proibido, foi o diabo quem sacrificou os humanos, para prestar um serviço a seu pai. E como arquitetar tal plano deve ter exigido premeditação – uma capacidade única da consciência – presumivelmente o diabo já havia se sacrificado primeiro. De fato, Jung dá muitas pistas em Resposta a Jó de que, em sua visão, esse era o caso: “Satanás, que, com boa razão, mais tarde recebeu o nome de 'Lúcifer' , soube fazer uso mais frequente e melhor da onisciência do que seu pai.” Satanás, o principal torturador, como o originalmente torturado; demônios como instigadores do amor exigente da autoconsciência (que é, de fato, como são frequentemente retratados na cultura popular, se prestarmos atenção): o simbolismo da história do Gênesis é extremamente rico, e Jung o conhecia.
No entanto, quando escreveu seu ensaio sobre os estágios da vida, as ideias de Jung sobre a natureza da consciência ainda estavam incompletas e em evolução. Seguindo a pista do nome da árvore que produziu o fruto proibido – a “árvore do conhecimento” – ele associa a consciência ao conhecimento contextual, ou seja, redes de conteúdos cognitivamente associados, aparentemente negligenciando a autorreflexão: “Não há problemas sem consciência. Devemos, portanto, colocar a questão de outra maneira: De que modo surge a consciência?… quando uma criança reconhece alguém ou algo – quando ela 'sabe' uma pessoa ou uma coisa – então sentimos que a criança tem consciência. Esse é, sem dúvida, também o motivo pelo qual no Paraíso foi a árvore do conhecimento que deu um fruto tão fatídico.” Ao insistir no conhecimento, Jung pode estar implicitamente – até mesmo inconscientemente – assumindo a definição de Schopenhauer, com a qual sabemos que ele estava familiarizado. De fato, para Schopenhauer, o conhecimento já pressupõe um grau de autorreflexão, uma separação entre sujeito e objeto (cf. Kastrup 2020). É refletindo – re-representando – uma experiência inicial em um nível superior de cognição que nos separamos, como sujeitos conhecedores, de nossas experiências conhecidas. É por isso que dizemos que temos dor, ou vemos um objeto, ou sentimos amor. Em outras palavras, somos aquilo no qual a dor, o objeto e o amor são meta-cognitivamente refletidos. Sem essa reflexão, seríamos efetivamente a dor, o objeto e o amor; não haveria diferença cognoscível entre a experiência e o experimentador.
Na verdade, a própria Bíblia já é muito clara sobre a natureza do conhecimento proporcionado pela árvore fatídica. Lá nos é dito que Adão e Eva, antes de comerem do fruto proibido, “estavam ambos nus, e não se envergonhavam” (Gênesis 2:25). Portanto, embora Adão e Eva não fossem cegos à própria nudez – presumivelmente a experimentavam o tempo todo – sua cognição dessa nudez de alguma forma não desencadeava a vergonha que desencadearia na maioria de nós, seres humanos conscientes. Adão e Eva tinham a experiência de estar nus, mas não da mesma maneira que você e eu a teríamos.
Então o diabo, disfarçado de serpente, diz a Eva: “quando comerdes vossos olhos se abrirão” (Gênesis 3:5). No entanto, os olhos de Eva presumivelmente já estavam abertos; ela não era cega. O diabo obviamente quis dizer algo mais do que apenas experiência perceptiva aqui.
Sugiro que o fruto da árvore do conhecimento conferiu a Adão e Eva um modo autorreflexivo de cognição. Comer do fruto desenvolveu neles não a capacidade de experimentar coisas – que já tinham – mas de saber que experimentavam coisas. Permitiu-lhes reconhecerem-se como aqueles que experimentam – ou seja, como sujeitos – em oposição às próprias experiências. Antes de adquirir essa capacidade, eles já podiam experimentar a nudez, mas não sabiam que a experimentavam. Portanto, não sentiam vergonha. Da Bíblia: “Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu; e deu também ao marido, e ele comeu. Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus.” (Gênesis 3:6–7) Exatamente! Só então souberam que estavam nus, de maneira autorreflexiva, embora já tivessem, o tempo todo, experimentado sua nudez. A Queda foi a queda na autorreflexão.
Psicólogos sabem que a autorreflexão está associada à nossa capacidade exclusivamente humana de pensar simbolicamente – ou seja, processar os conteúdos da consciência através da mediação de indicadores internos, como palavras, para nos dizer em linguagem o que estamos experimentando e assim planejar deliberadamente nossas ações. Alex Gillespie dá um exemplo: “Para obter o jantar, é preciso primeiro nomear… a própria fome… Essa nomeação, que é um momento de autorreflexão, é o primeiro passo para começar a construir, semioticamente, um caminho de ação que levará ao jantar.” (Gillespie 2007: 678) O surgimento do pensamento simbólico em nós humanos é a Queda; foi precisamente o que nos diferenciou do “ser inconsciente e ingênuo” que originalmente éramos, guiados puramente pelo instinto e sem problemas.
Notavelmente, paleoantropólogos hoje sabem que os primeiros humanos modernos, anatomicamente indistinguíveis de nós, originalmente não tinham a capacidade de pensamento simbólico que temos agora. Nas palavras de Ian Tattersall, curador do Hall of Human Origins do American Museum of Natural History, “No que diz respeito ao Homo sapiens, parece que a forma corporal era uma coisa, enquanto o sistema cognitivo simbólico que nos distingue tão grandemente de todas as outras criaturas era inteiramente outra. Os dois não foram adquiridos ao mesmo tempo , e os primeiros Homo sapiens anatômicos parecem ter sido cognitivamente indistinguíveis dos neandertais e outros contemporâneos.” (Tattersall 2012: 185–186) Portanto, quando caímos na autorreflexão, já éramos fisicamente o que somos hoje. Não caímos na humanidade; caímos como humanos. A Queda é um evento pré-histórico real, embora envolto em mistério: “Nossos ancestrais fizeram uma transição quase inimaginável de uma maneira não simbólica, não linguística de processar e comunicar informações sobre o mundo para a condição simbólica e linguística que desfrutamos hoje. É um salto qualitativo no estado cognitivo sem paralelo na história. De fato,… a única razão que temos para acreditar que tal salto poderia ter sido feito, é que foi feito.” (Tattersall 2012: 199) É de pasmar como a Queda foi improvável, pois “nossa nova maneira de lidar com informações dificilmente foi um resultado previsível de qualquer tendência identificável que a precedeu. E também não foi simplesmente um efeito de limiar de adquirir um volume cerebral cada vez maior ao longo de vastos períodos de tempo… parece extremamente provável que… nossa capacidade cognitiva foi adquirida como um subproduto do enorme acidente genético que resultou no aparecimento do Homo sapiens… o potencial que criou então permaneceu inativo por um período substancial de tempo, até que seu potencial simbólico foi 'descoberto' por seu dono.” (Tattersall 2012: 208–210) Bem, sincronicidade então! Não, sério, pause por um momento para permitir que a importância da declaração citada acima seja assimilada: Tattersall está nos dizendo aqui que não houve pressão seletiva direta para fixar nossa capacidade de pensar simbolicamente – e, portanto, de autorrefletir – em nosso genoma. A princípio, e então “por um período substancial de tempo”, isso não nos ajudou em nada a sobreviver. Portanto, na verdade não entendemos como ou por que viemos a tê-lo em primeiro lugar. O melhor que podemos dizer é que foi tudo um acidente, que por dezenas de milhares de anos foi basicamente inútil.
A conclusão é que atualmente não temos explicação natural para nossa queda na autorreflexão. Até onde sabemos, foi um 'ato de Deus'…
… Ou, é claro, do diabo, pois a Bíblia nos diz que o diabo estava por trás de todo o caso. O principal anjo de Deus, que caiu primeiro, estava determinado a ajudar seu pai a desenvolver a introspecção autorreflexiva, para que ele (Deus) pudesse finalmente consultar sua onisciência deliberadamente. O diabo então nos usou para alcançar seu objetivo. E como resultado de cair em tal armadilha diabólica, fomos – e ainda estamos sendo – severamente punidos: “maldita é a terra por tua causa; em fadigas obterás dela o sustento durante os dias de tua vida. Ela produzirá também cardos e abrolhos, e tu comerás a erva do campo. Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, pois dela foste formado; porque tu és pó e ao pó tornarás.” (Gênesis 3:17–19) E então, “o SENHOR Deus o lançou fora do jardim do Éden, para lavrar a terra de que fora tomado. E, expulso o homem, colocou querubins ao oriente do jardim do Éden e o refulgir de uma espada que se revolvia, para guardar o caminho da árvore da vida.” (Gênesis 3:23–24) O exílio do paraíso marcou o fim do ser humano inconsciente, vivendo do instinto sem problemas, e o início do sofrimento psicológico. A Queda representa o início de nossas vidas de sacrifício a Deus.
Como a aquisição da autorreflexão pode levar a tanto sofrimento? A resposta não é difícil de ver. É a autorreflexão que nos permite reconhecer nossa própria condição limitada como criaturas mortais, o que por sua vez nos permite criar narrativas sobre nós mesmos e o mundo. Produzimos compulsivamente histórias sobre como o passado deveria ter sido, levando a arrependimento, amargura, decepção, raiva e uma incapacidade geral de deixar ir. Também produzimos compulsivamente histórias sobre o que o futuro ainda pode ser, levando à ansiedade e ao medo. Antes da Queda, vivíamos apenas no momento presente, em unidade com a natureza, como os outros animais no paraíso.
O exílio do paraíso levou ao sofrimento porque, a partir daquele momento, começamos a comparar a realidade com cenários alternativos imaginados, 'realidades alternativas' de nossa própria criação. Mas quem tem o poder de criar realidades? Deus, é claro. Então “quando comerdes vossos olhos se abrirão, e sereis como Deus” (Gênesis 3:5).
A autorreflexão nos permite deixar a imediatez do momento presente imaginando cenários passados e futuros, com os quais então nos torturamos. Caímos quando o fruto proibido nos deu a capacidade de criar narrativas internas sobre o que deveria ter sido e o que ainda pode ser. Tornamo-nos viciados em usar essas alternativas auto-fabricadas para lutar contra o que é. E essa luta fútil é o que gera todo sofrimento psicológico.
No entanto, é a mesma luta que aguça nossa consciência e nos permite prestar um serviço a Deus. Cada problema “nos força a uma consciência maior”; cada um nos ajuda a ajudar Deus. Afinal, a árvore é supostamente “a árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gênesis 2:9), não apenas do mal. Através desse conhecimento do bem – a re-representação da criação no espelho da autorreflexão – ajudamos Deus a tomar consciência de si mesmo.
Nossas vidas são de fato sacrifícios, residindo aí seu profundo significado.
