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Ibn Arabi (TA) – Tratado do Amor (Gloton)

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A obra de Ibn Arabi não pode ser dissociada de seu caso espiritual único. Selo da santidade maometana, ele expressa perfeitamente o tipo completo da santidade totalizadora do último dos profetas: Muhammad.

Muhyî ad-Dîn Ibn Arabi, o vivificador da Religião, chamado de o maior Mestre, ash-Shaykh al-akbar, a pena guiada pelo Espírito santo, apresenta um tratado orgânico, exaustivo e atraente sobre o amor considerado sob todos os aspectos possíveis: divinos, espirituais e naturais ou físicos. Expõe-os de maneira particularmente viva, incluindo poesias de rara beleza, anedotas de santos muçulmanos, homens e mulheres, descrevendo os diferentes atributos dos amantes verdadeiros. Faz isso como um amante consumado, expressando de forma convincente os estados que ele mesmo viveu e experimentou intimamente. Também relata as diversas perspectivas sobre o amor que foram apresentadas antes dele por outros mestres e poetas autênticos.

O leitor menos familiarizado com os problemas do amor se sentirá direta e profundamente tocado por todos os aspectos que ele assume, do mais humilde, aparentemente, ao mais sublime.

Alguns poderiam pensar, no entanto, que o amor divino e espiritual não lhes interessa pessoalmente, que é de origem e natureza demasiado inacessíveis para que possam vivê-lo integralmente e nos pequenos fatos da vida cotidiana.

É por isso que, nesta breve introdução, gostaríamos de lembrar as diferentes modalidades principais que o amor comporta, desde a mais concreta até a mais elevada, em Deus mesmo, origem, vida íntima e finalidade do amor universal do qual ninguém pode escapar. Pois nenhum de seus aspectos é dissociável do ponto de vista divino, que valoriza o amor no fim e no princípio.

Segundo o autor e outros mestres do Taçawwuf, o amor não é definível. É uma aspiração, uma energia que atrai o ser inteiro para sua origem divina, seja essa atração provocada diretamente no indivíduo, ou pela mediação de outras pessoas ou causas que são apenas o pretexto para a atualização de suas virtualidades, seja essa afeição pura ou aparentemente pervertida. Cada um traz em si as possibilidades do amor, e ninguém pode dele se esquivar, assim como nenhuma criatura pode existir sem seu Criador e nenhum servo sem seu Senhor.

Certamente, para ilustrar os temas do amor universal, muitos exemplos e situações podem ser encontrados! Mas os mais significativos e imediatos continuam sendo o amor materno, o amor conjugal e a caridade.

A mãe não reproduz, conscientemente ou não, todo o processo amoroso da criação? Concebe a criança, fruto do amor, a deseja assim como Deus ama conhecer o Tesouro, oculto em Sua Essência, que Ele quer dar a conhecer por amor, como diz pela boca de Seu Profeta bendito. E quando a criança nasce, a mãe não cessa de amá-la e protegê-la em virtude de uma lei inata e espontânea do amor.

O homem e a mulher estão inexoravelmente submetidos a essa lei universal do amor. A atração que os leva um ao outro tem como principal motivo, confessado ou não, reconhecer-se no outro e chegar a uma união que supera, por um tempo, a diferença de cada um. Pois, na origem da dualidade e da multiplicidade, está a Unidade do ser, da qual cada um guarda uma consciência mais ou menos clara, à qual não pode deixar de aspirar e para a qual é invencivelmente atraído, queira ou não.

Nesse ato de união de dois espíritos e dois corpos, como formula Ibn Arabi em uma de suas poesias no início do tratado, cada elemento do casal é criador, cada um à sua maneira, cumprindo assim, em um instante de plenitude, a função sublime do Criador de todas as coisas por amor de Se fazer conhecido e de Se reconhecer em Sua criação.

No extremo oposto, aparentemente desse processo amoroso, encontra-se a aversão de dois seres feitos em princípio para se completarem e se unirem. Esse caso frequente representa uma união irrealizável pelos seres em questão, que não são capazes de desenvolver um pelo outro as virtudes do amor que trazem em si.

No entanto, o amor é sempre positivo em si e abraça tudo sem exceção em sua excelência santificante. Em sua essência, é unificador e vivificante, mas, ao se atualizar no mundo da multiplicidade, encontra suportes que o recebem com maior ou menor pureza e limpidez. Quando, por suas disposições, os seres o desnaturam, ele se torna neles aversão e perversão e se transforma em ódio.

Deus não ama ver tais comportamentos se atualizarem. Por isso os sanciona, para marcar bem que o amor exige harmonia para se desenvolver e para que os seres se voltem para Deus por ele, Fonte única da qual procede, Origem que é ela mesma Amor.

No entanto, esse duplo movimento que o amor assume — atração e repulsão, expirar e inspirar, desenvolvimento e resolução, dilatação e concentração — é necessário à criação; reproduz-se a cada fase recorrente do processo da manifestação universal, cuja origem permanece sendo o Amor.

Além dessas duas ilustrações do amor, uma grande parte é dedicada ao amor considerado nos modos de relação que os seres têm uns com os outros. Tal é o sentimento de caridade universal, que deve levar as criaturas umas às outras para que a pirâmide do amor seja perfeita. É por isso que o Livro sagrado do Islã, o Alcorão, recomenda com tanta insistência essa virtude cardeal de compaixão, misericórdia e afeição mútua entre todos os membros solidários da Comunidade, não apenas humana, mas composta por todos os seres criados por Deus.

Esse fenômeno generalizado de atração e convergência próprio do amor está presente em cada coisa criada segundo sua economia fundamental. É um traço da Beleza, qualidade eminentemente divina, que exerce seu poder de transformação e santificação sobre as coisas e os seres criados segundo os próprios princípios da harmonia. Deus é belo e ama a Beleza, dirá o Profeta do Islã. A Beleza é, portanto, a expressão mais acabada do Amor universal.

Quem nunca sentiu a virtude beatificante da Beleza de Deus e do Amor que Ele tem pelas coisas que produz, ao contemplar a mais simples flor que cresce segundo normas harmônicas inimitáveis, a árvore que se desenvolve em esplendor para refletir, em cada um de seus elementos, a graça majestosa de Seu divino Artífice? Essa contemplação da virtude divina nas coisas é o efeito dessa Beleza. E quando ela não é mais percebida, os seres aspiram a redescobri-la através de suportes que a expressam, para renovar a contemplação de seu princípio amoroso, que é seu Viático supremo!

Eis, então, cada um capturado nas redes do Amor, de uma forma ou de outra, sem poder se libertar. A trama do Universo é tecida por ele, que aperfeiçoa a forma de cada coisa. A criatura moldada por ele não faz senão retornar a seu Criador esse amor depositado nela potencialmente, e os germes que nela estão contidos devem ser desenvolvidos pelo amante apaixonado por Deus apenas, o Amado verdadeiro e supremo. Poderia o amante escapar ao poder libertador do Amor, se a menor de suas aspirações e cada uma de suas energias o expressam e não podem deixar de manifestá-lo na forma que convém ao amante? Pode-se mesmo afirmar que esse fenômeno de expressão universal do Amor existe porque o ser produzido por ele é ele mesmo amor e só pode evoluir nele, levando-o ao fim último de todas as coisas, onde o Amante, o Amado e o Amor são uma só e mesma realidade e se resolvem finalmente em sua essência comum incondicionada!

Quando o amante se orienta assim para a Beleza, expressão acabada do Amor, e contempla seu princípio através dela, nada mais pode detê-lo nos graus ascendentes desse amor e na visão unitiva de Deus através das realidades que Ele produz por e no Amor. A criatura se liberta então progressivamente da consciência disparatada e condicionada das coisas para acessar o conhecimento universal da Realidade divina. Essa contemplação da Unidade e da Beleza de Deus em todas as coisas lhe proíbe para sempre de condicionar o Amor e considerá-lo segundo modos restritivos e desviados que conduzem aparentemente a pervertê-lo.

O ser, que é feito para amar e ser amado, busca no Amor a união essencial, fonte de seu amor e de sua própria realidade, pela mediação das outras criaturas, igualmente frutos do Amor. Vivendo-o dessa maneira, não cessa de se valorizar e de contribuir para aperfeiçoar os outros por seu comportamento adequado, que gera prosperidade e felicidade.

Não negligenciará nem prejudicará ninguém, não excluindo nenhuma das manifestações do Amor, mas realizará a identidade de seu ser com seu Princípio de amor, e cada atitude de afeição será para ele a ocasião de alcançar esse fim.

É por isso que o amor será vivido por ele em todas as suas formas, que valorizará no quadro da Lei revelada, ela mesma veículo perfeito do Amor. Jamais, então, poderá desconsiderar o amor físico ou natural em benefício apenas do amor espiritual ou divino, pois o Amor, em última análise, não pode ser vivido a partir de simples dados ou categorias conceituais, mesmo que, para as necessidades da exposição, devam ser distinguidos os diferentes aspectos que ele comporta.

Um dos méritos adicionais do tratado que Ibn Arabi apresenta é nunca ter dissociado as diversas formas de amor das quais o ser humano é capaz. Composto de um corpo, uma alma e o Espírito, não pode deixar de participar dos três modos principais pelos quais o amor se impõe: físico, espiritual e divino, para realizá-los em um equilíbrio harmonioso de todo o ser, dominando cada um deles.

Este tratado, de uma riqueza inesgotável, nos conduz progressivamente à vida verdadeira do amor. É um hino ao Amor, um canto de Amor, um chamado de Amor irresistível que nos conquista na vida cotidiana e nos transporta para onde devemos nos situar no fim, no princípio e na fonte de vida do Amor universal e redentor!

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