Hulin (MS) – Afetividade (Affectus)
HulinMS Para quem busca recuperar o sentido original da afetividade, a primeira armadilha a evitar é talvez a da linguagem. O termo affectus – derivado de ad-ficere: “exercer uma ação sobre” – implica de fato a ideia de uma modificação introduzida à força em um sujeito que, sem dúvida, a ela se prestava, mas que em si mesmo não a requeria. Aplicado à consciência, o termo sugere que esta seria em si neutra, indiferente, puro olhar lançado sobre os seres e as coisas, mas que, ao mesmo tempo, o mundo exterior, por intermédio dos sentidos, exerceria sobre ela certa violência, suscitando nela a série de perturbações que se agrupam sob a denominação geral de “emoção”. A afetividade se definiria assim como o conjunto das modificações perturbadoras sofridas por uma consciência essencialmente representativa, uma consciência cujo intellegere constituiria a essência e o sentire apenas o acidente. No entanto – e sem excluir a necessidade de restabelecer in fine, com um alcance na verdade bem diferente, a ideia de uma consciência fundamentalmente neutra – convém antes de tudo denunciar a ilusão intelectualista veiculada pelo uso de tal terminologia. Em verdade, se a consciência humana se reduzisse a um poder geral de representação e intelecção – mens sive ratio –, jamais poderíamos acessar o conhecimento do menor objeto. Isso porque os conhecimentos não se deixam, em nenhum domínio, assimilar a dados inertes que bastaria registrar como se recolhe pedras no caminho para jogá-las em um saco. Em sua forma originária, ao menos, eles se apresentam como respostas que o raciocínio, a experiência, ou alguma combinação dos dois, dão a questões que devem ter sido previamente formuladas, ainda que de modo implícito. E o que vale para sua aquisição primitiva aplica-se igualmente a sua transmissão, seja qual for sua forma. Se não aceito retomar em pensamento as próprias questões que o inventor de tal ideia, lei ou teorema inicialmente se colocou e refazer com ele as etapas sucessivas de seu itinerário intelectual, não farei mais que memorizar fórmulas mortas e, para mim, vazias de sentido. Correlativamente, o critério do conhecimento vivo ou em ato – isto é, capaz a todo instante de se retransformar em ato concreto de intelecção – é sua capacidade de interagir com o conjunto do saber constituído, por exemplo através das contradições aparentes que sua consideração pode suscitar, para relançar novas interrogações e preparar assim a conquista de novas províncias do saber. A curiosidade intelectual, o interesse especulativo aparecem então como a própria alma do conhecimento, de seu desenvolvimento indefinido como de sua preservação através do tempo. Um supercomputador no qual se tivesse, por hipótese, inserido todo o acervo atual da matemática nada tiraria disso… a menos, claro, que tivesse sido programado por um humano para uma pesquisa definida. Não tendo por si mesmo proposto nenhum problema, permanece, diante daqueles que o homem lhe impõe, sem expectativa particular, sem curiosidade pelo resultado. A sequência das operações poderia ser interrompida a qualquer instante por um incidente, como falta de energia etc., sem que a máquina (salvo na ficção científica!) sentisse isso como uma incompletude. Sejam quais forem, com efeito, suas performances em cálculo, falta-lhe o essencial – a saber, o menor interesse pelas operações das quais é sede ou suporte, mas não, propriamente falando, autora. Consideramos essa falta de interesse como expressão particular de sua natureza de autômato não pensante. Mas pode-se inverter a proposição e perguntar se o caráter cego, inconsciente, de seu funcionamento não decorreria diretamente de sua incapacidade de se projetar no futuro propondo-se fins. Isso basta, porém, para questionar a independência de princípio da consciência intelectual e subordiná-la à consciência afetiva? Se o conhecimento em geral só é possível com base no interesse, não se trata aqui de um interesse puramente intelectual, de uma curiosidade de ordem antes de tudo teórica ou especulativa, distante por um abismo dos desejos e paixões que definem propriamente o domínio da afetividade? Contudo, o que entendemos exatamente por “interesse puramente intelectual”, senão um interesse totalmente alheio às necessidades do corpo e às pulsões que as exprimem? Tal coisa é possível? É concebível? É aqui o momento de lembrar que a mola interna da curiosidade intelectual não poderia em nenhum caso ser ela mesma de natureza puramente intelectual. Acredita-se ordinariamente nisso porque se confunde essa mola com aquilo em que ela se apoia ou se agarra – a saber, certa armadura nocional, um entorno de conceitos adquiridos através de atividade teórica anterior. Em matemática, por exemplo, as novas interrogações parecem ditadas pela estrutura mesma do saber adquirido, ou antes pelas falhas que nela se desenham. Pergunta-se assim como transpor para outros ramos da matemática um resultado obtido num ramo particular, como estender ao contínuo e ao infinito o que foi demonstrado do discreto e do finito, como “reduzir” um sistema de axiomas, aumentar o poder de um algoritmo, generalizar noções como as de número, espaço, função etc. Mas donde procedem, por sua vez, essas abordagens? Da necessidade de fazer recuar o vago, o confuso, o indeterminado, o contraditório; necessidade, em suma, de eliminar certa matéria caótica e opaca; necessidade de ordem, clareza, coerência, unidade; vontade de não mais ter diante de si existentes brutos – ainda que sejam seres matemáticos subtraídos à intuição sensível – que lhe lancem um desafio; necessidade de dissolvê-los na luz da consciência, de assimilá-los. Ora, que o caótico valha menos que o ordenado, o confuso que o claro, o incompleto que o completo, o contraditório que o coerente etc., esse postulado de toda ciência é ele mesmo um pré-julgado, isto é, a expressão de uma escolha certamente consubstancial à ciência, condição de possibilidade da ciência, mas sempre, justamente, realizada no modo tácito, antes do desdobramento efetivo do conhecimento e como para lhe abrir caminho. Evidenciamos assim a presença, sob a atividade científica, mesmo em matemática ou lógica, de uma espécie de alicerce feito de juízos de valor que, na exata medida em que definem seu projeto fundamental, a governam à sua revelia. De tudo isso resulta claramente que a libido sciendi não é senão uma forma particular, certamente privilegiada, da libido em geral e que a consciência intelectual, longe de poder pretender a qualquer autonomia de princípio, repousa sobre a consciência afetiva como sobre sua condição de possibilidade. Isso não significa apenas que um hipotético ser inteligente mas desprovido de toda afetividade não poderia, por falta de motivação, lançar-se em qualquer empresa gnoseológica. Mais profundamente, a afetividade, com sua inevitável dimensão de parcialidade, está no próprio coração do ato de compreender, no sentido de que uma consciência perfeitamente neutra e inacessível a toda consideração de valores se limitaria a deixar as coisas no estado em que se apresentam a nós, isto é, em seu ser-aí inerte, sua dispersão e sua facticidade. Só seres cuja polaridade do “melhor” e do “menos bom” constitui a lei de funcionamento podem ser portadores de qualquer projeto, inclusive o do respeito absoluto à objetividade no conhecimento. E toda a estranheza da situação está aí: o que é a própria condição de possibilidade das démarches do espírito, seu motor interno, sua curiosidade, sua “abertura” aparece ele mesmo, segundo as exigências da racionalidade, como um desequilíbrio, uma assimetria, um parti-pris injustificável… algo que as démarches do espírito, se pudessem um dia tornar a experiência totalmente inteligível, teriam vocação para eliminar. Com base nessa primeira conclusão, faz-se luz a possibilidade de questionar a concepção corrente do afeto como aquilo que, de fora, viria trazer perturbação – uma perturbação inicialmente desprovida de significado – numa consciência representativa neutra e serena. Desde então, com efeito, que a assimetria do “melhor” e do “menos bom” desempenha o papel da diferença mínima de potencial permitindo à corrente de consciência circular, o postulado de uma neutralidade fundamental da consciência aparece como hipótese gratuita e o primado do intellegere sobre o sentire como devendo ser invertido. Tal inversão, contudo, com as consequências que acarreta, poderia talvez ainda ser evitada, mas sob uma condição: que esses juízos de valor elementares que estruturam a consciência e a guiam em todas as suas démarches possam eles mesmos ser reduzidos a puras decisões racionais. Convém portanto mostrar que não pode ser assim.
