Versões do Mito de Hesíodo
Em uma primeira versão, a narrativa descreve as aventuras de personagens divinas1): Zeus luta pela soberania contra Tifão, dragão de mil vozes, força de confusão e de desordem. Zeus mata o monstro, cujo cadáver dá nascimento aos ventos que sopram no espaço separando o céu e a terra. Depois, incitado pelos deuses a tomar o poder e o trono dos imortais, Zeus reparte entre eles as “honras”. Sob esta forma, o mito está ainda muito próximo do drama ritual de que ele é a ilustração, e de que se acharia o modelo na festa real da criação do Ano Novo, no mês Nisan, em Babilônia2). No fim de um ciclo temporal — um Grande Ano — o rei deve reafirmar o seu poder de soberania, posto em causa nesta viragem do tempo em que o mundo retorna ao seu ponto de partida3). A prova e a vitória reais, ritualmente mimadas por uma luta contra um dragão, têm valor de uma recriação da ordem cósmica, própria da estação, social.
O rei está no centro do mundo, como ele está no centro do seu povo. Cada ano, repete o feito realizado por Marduc e que um hino celebra, o Enuma Elish, cantado no quarto dia de festa: a vitória do deus sobre Tiamat, monstro fêmea, encarnando as forças da desordem, o regresso ao informe, o caos. Proclamado rei dos deuses, Marduc mata Tiamat, com o auxílio dos ventos que penetram no interior do monstro. Morto o dragão, Marduc abre-o em dois como uma ostra, atira uma metade ao ar e imobiliza-a para formar o céu. Fixa então o lugar e o movimento dos astros, fixa o ano e os meses, cria a raça humana, distribui os privilégios e os destinos. Através do rito e do mito babilônios, exprime-se um pensamento, que não estabelece ainda entre o homem, o mundo e os deuses, uma nítida distinção de planos. O poder divino concentra-se na pessoa do rei. O ordenamento do mundo e a regulação do ciclo das estações aparecem integrados na atividade real: são aspectos da função de soberania. Natureza e sociedade estão confundidas.
Pelo contrário, em uma outra passagem do poema de Hesíodo4), a narrativa da criação da ordem apresenta-se desprovida de todo conjunto de imagens míticas, e os nomes dos protagonistas são suficientemente transparentes para revelar o caráter “natural” do processo que conduz à organização do cosmo. Na origem, acha-se Caos, sorvedouro sombrio, vácuo aéreo onde nada é distinto. É preciso que Caos se abra como uma goela (chaos está associado etimologicamente a chasma: boqueirão, chaino, chasko, chasmomai: abrir-se, ter a boca aberta, escancarar-se) para que a Luz (aither) e o Dia, sucedendo-se à Noite, aí se introduzam, iluminando o espaço entre Gaia (a terra) e Ouranos (o céu) doravante desunidos. A emergência do mundo prossegue com o aparecimento de nóiros (o mar), que surge, por seu turno, de Gaia. Todos estes nascimentos sucessivos, sublinha Hesíodo, operam-se sem a intervenção de Eros (amor)5): não por união, mas por segregação. “Eros é o princípio que aproxima os opostos — como o macho e a fêmea — e que os une. Enquanto não intervém, a gênese processa-se por separação de elementos previamente unidos e confundidos (Gaia gera Ouranos e Pontos).
