Murata (TI) – Pares que compõem todas as coisas
MurataTI
Uma leitura cuidadosa do Alcorão e do Hadith mostra que a visão islâmica fundamental sobre homens e mulheres postula uma complementaridade de funções: “E de tudo criamos um par” (51:49). Nenhum dos dois pode ser completo sem o outro. No pensamento cosmológico islâmico, o universo é visto como um equilíbrio baseado em relações polares harmoniosas entre os pares que compõem todas as coisas. Além disso, todos os fenômenos externos são reflexos de realidades internas e, em última instância, de Deus. Toda multiplicidade pode ser reduzida, de alguma forma, ao Uno. Todas as criaturas do universo são apenas sinais de Deus. Portanto, os pares, incluindo o masculino e o feminino, devem revelar algo sobre a própria Essência de Deus.
Uma das muitas ciências cosmológicas desenvolvidas na civilização islâmica clássica foi a astrologia ou “as propriedades das estrelas” (ahkam al-nujum). Para a maioria dos pensadores muçulmanos, o objetivo dessa ciência era demonstrar de que maneira o céu, junto com as realidades que contém, exerce influências específicas sobre a Terra. A investigação astrológica assume a forma de descobrir correspondências qualitativas entre coisas no mundo superior e no mundo inferior. Para os mais perspicazes, não há questão de uma influência direta das estrelas. Em vez disso, as relações entre os corpos celestes e entre o céu e a terra lançam luz sobre relações correspondentes ou analógicas encontradas neste mundo e na alma. A chave aqui é a analogia ou correspondência. E isso é estabelecido pelos atributos que as coisas manifestam, todos os quais, em última instância, remetem ao Uno. Em outras palavras, diferentes coisas, em diferentes níveis de realidade ou em diferentes tempos e lugares, manifestam as mesmas qualidades do Real (al-haqq).
Estreitamente relacionada ao pensamento analógico presente na astrologia está a ta’wil, ou interpretação esotérica do Alcorão, praticada por muitos sufis e também por certas autoridades xiitas. O objetivo da ta’wil era frequentemente mostrar como os versículos corânicos que falam do cosmos ou contam histórias dos profetas possuem um segundo nível de interpretação, relacionado à situação interna do indivíduo. O microcosmo “corresponde” ao macrocosmo. Nesse nível, o Alcorão descreve o drama da alma humana em sua relação com Deus.
À primeira vista, as ta’wils podem parecer arbitrárias. Mas não é assim quando se considera o pensamento analógico a partir do qual essa tradição surgiu. As chaves para a ta’wil podem ser encontradas em textos que tratam das correspondências entre macrocosmo e microcosmo—textos frequentemente profundamente enraizados no conhecimento grego. Nesses textos, a astrologia é colocada dentro de um contexto mais amplo de pensamento analógico.
