Murata (VI) – Deus
MurataVI
O primeiro princípio da fé islâmica é Deus. Mas quem ou o que é Deus? Praticamente todas as autoridades muçulmanas afirmam que uma verdadeira compreensão da palavra “Deus” é impossível sem revelação divina. Em outras palavras, o próprio Deus deve dizer às pessoas quem Ele é. Afinal, é difícil o suficiente entender outras pessoas—e quase impossível fazê-lo a menos que se expressem por meio da fala. As pessoas podem ser vistas e tocadas, mas Deus está além do alcance da visão humana. Se quisermos compreender quem é Deus, Ele próprio deve nos dizer. Deus revela quem Ele é falando por meio dos profetas. Suas palavras são registradas nos livros dos profetas, ou seja, nas escrituras. O que distingue os muçulmanos dos seguidores de outras religiões é que eles aceitam Maomé como mensageiro de Deus e o Alcorão como a mensagem divina; em contraste, os seguidores de outras religiões têm outros profetas (segundo a visão islâmica tradicional).
A mensagem fundamental de todos os profetas é a mesma: “Não há outro deus além de Deus.” Em suma, os muçulmanos entendem que essa palavra “Deus” refere-se à realidade que se revela através do Alcorão, e que “deus” se refere a qualquer coisa falsamente descrita por atributos que o Alcorão atribui a Deus.
Claramente, o primeiro passo para compreender Deus é entender o Alcorão. No entanto, o Alcorão não é um livro fácil de interpretar. Pode-se dizer, sem exagero, que os muçulmanos vêm explicando o Alcorão há catorze séculos e ainda não esgotaram seu significado. Em outras palavras, não importa quanto se fale sobre Deus—sempre haverá mais a ser dito.
Antes de abordar o que o Alcorão diz sobre Deus, podemos examinar as palavras árabes ilah (deus) e Allah (Deus). Segundo os dicionários árabes, um ilah é qualquer coisa tomada como objeto de adoração, veneração ou serviço. O Alcorão usa essa palavra tanto em sentidos positivos quanto negativos, podendo significar tanto o verdadeiro Deus quanto um falso deus. Frequentemente, o termo é usado positivamente, como nos versos “Não há outro deus senão um único Deus” (5:73), “Deus é um só Deus” (4:171) e “Vosso Deus é um só Deus, então submetei-vos a Ele” (22:34).
O Alcorão também emprega ilah no sentido negativo, para se referir a ídolos ou falsos deuses. Por exemplo, no relato corânico sobre os Filhos de Israel e o Bezerro de Ouro, o povo diz a Moisés: “Ó Moisés, faze para nós um deus, como eles têm deuses” (7:138). Em sua resposta, Moisés declara: “Devo buscar um deus para vós, além de Deus?” (7:140). A partir dessa perspectiva, torna-se fácil entender que “Não há outro deus além de Deus” significa que todos os deuses que as pessoas adoram, além de Deus, são falsos.
O Alcorão usa ilah em outras formas negativas. Afinal, um deus é tudo aquilo que alguém adora ou serve, independentemente de sua natureza. Isso não implica que o deus adorado seja a única coisa servida, pois as pessoas podem ter múltiplos deuses—e o Alcorão frequentemente as critica por isso. O deus adorado não precisa ser externo. Muitas vezes, imaginamos um deus como algo “lá fora”, nos céus, uma entidade superior a nós. No entanto, a palavra árabe ilah não exige essa concepção. Alguém pode perfeitamente adorar um deus que esteja dentro de si mesmo ou até inferior a si.
O Alcorão condena veementemente aqueles que adoram seus próprios desejos e impulsos como se fossem deuses. O termo utilizado é hawa, que pode ser traduzido como “capricho”. Sua raiz é quase idêntica à da palavra hawa, que significa “vento”. O capricho é um vento interno que sopra de um lado para o outro—um impulso momentâneo. Um dia se deseja uma coisa, no dia seguinte, outra. Para o Alcorão, o capricho é o pior dos deuses. Ao adorá-lo, a pessoa nunca sabe o que é certo e o que é errado. Suas ideias, sentimentos e emoções mudam constantemente. O vento continua soprando e, segundo o Alcorão, se alguém se deixar levar por ele, será conduzido à destruição. Alguns versos ilustram essa ideia:
- “Quanto àquele que teme a posição do seu Senhor e proíbe sua alma de seguir seus caprichos, certamente o paraíso será o seu refúgio.” (79:40-41)
- “Viste aquele que tomou seu próprio capricho por deus?” (25:43)
- “Quem é mais extraviado do que aquele que segue seu próprio capricho, sem orientação de Deus?” (28:50)
- “Viste aquele que tomou seu capricho por deus, e Deus o desviou, apesar de seu conhecimento?” (45:23)
O Alcorão também usa o plural hawai (caprichos) no mesmo sentido. Em dezesseis das dezessete ocorrências em que esse plural aparece, ele está associado ao verbo “seguir”. Aqueles que ignoram a orientação divina seguem seus próprios caprichos—os pequenos deuses internos—e acabam na perdição. A mensagem é clara: as pessoas devem evitar falsos deuses e buscar orientação de Deus por meio da profecia.
Mais tarde, essa palavra caprichos passou a ser usada para se referir a “heresias” ou “seitas”. Os membros de seitas seguem os ventos de seus próprios desejos e ignoram a mensagem dos profetas. Ou seguem seus próprios impulsos—ou os de seu líder—para interpretar as escrituras. Essa evolução semântica do termo caprichos é paralela ao significado da palavra “heresia”, que deriva de uma raiz grega que significa “escolher”. Uma heresia é um caminho escolhido por alguém sem a orientação de Deus.
Se um deus pode ser um falso deus ou um verdadeiro deus, Deus, por definição, é o verdadeiro Deus. Se um deus é qualquer coisa que pode ser adorada, Deus é aquilo que deve ser adorado. Assim, dizer “Não há outro deus além de Deus” significa que nenhum serviço ou adoração deve ser prestado a nada além de Deus, pois tudo que não for Deus só pode ser um falso deus.
