Campanella e os anjos (D.P.Walker)
Walker1988
Em seu Atheismus Triomphatus, Campanella aborda a questão das diversas religiões pagãs e, entre elas, o culto das estrelas, do céu e do Sol. Isso, em sua opinião, é menos repreensível do que outros tipos de religiões não cristãs: pois pode-se ver que essas partes do mundo estão afastadas de toda corrupção, e dotadas de uma beleza simples e resplandecente; e elas são as mais nobres causas das coisas inferiores, e vivem em uma região sublime, derramando constantemente sobre nós luz, calor e influências benéficas, gerando, mudando e produzindo todas as coisas; se levarmos tudo isso em conta, os pagãos poderiam facilmente ser levados a se considerarem deuses. Olhando mais de perto, no entanto, Campanella concluiu que, afinal, não se deveria adorar as estrelas como sendo divinas; mas é tão evidente que ele lamenta e hesita que, a partir apenas dessa passagem, temos o direito de suspeitar fortemente que ele próprio praticou esse tipo de culto. A questão crucial, para Campanella, é saber se as estrelas são os corpos vivos das almas ou, seguindo a opinião aristotélica e tomista, simples corpos inanimados movidos por Inteligências; é óbvio, para ele, que, neste último caso, ninguém teria a ideia de adorá-las, nem, ao que parece, as Inteligências motrizes. Se o primeiro ponto de vista, sustentado pelos platônicos e por muitos Padres, e que Tomás admite ser compatível com o dogma cristão, estiver correto, então as estrelas possuem almas intelectuais e corpos vivos inteiramente feitos de espírito muito sutil (o que talvez explique por que o Sol é chamado de “espírito” no Eclesiastes), que lhes permite sentir e comunicar. Mesmo assim, porém, elas são, infelizmente, como os anjos, apenas criaturas e não deveriam ser adoradas. Novamente, Caetano pensa que a animação das estrelas é a opinião oficial da Igreja e que não se deve duvidar dela. No prefácio da missa canta-se “Deum laudant Angeli, adorant Dominationes, tremunt Potestates: Coeli, Coelorumque Virtutes, ac beata Seraphim & c. incessabili voce proclamant”, e isso mostra que a Igreja sustenta que não apenas as ordens dos anjos, mas os próprios céus, e as Virtudes dos céus, louvam a Deus, como corpos e almas animados; o que também é subentendido pelas palavras de Deus no Livro de Jó: “Quando as estrelas da manhã cantavam em coro, e todos os filhos de Deus exclamavam de alegria.”
“Quando eu refletia sobre essas coisas”, diz Campanella, “perguntava-me se era conveniente adorar as estrelas.” Ele finalmente concluiu que não se deve, pois não é certo que sejam animadas. Elas provavelmente são, mas esse dogma, considerando a loucura inconstante das pessoas e sua incerteza, pois não foi expressamente revelado por Deus, não é frequentemente mencionado. E certamente Deus é adorado com não menos sabedoria e magnanimidade em Si Mesmo, do que nessas estátuas e imagens vivas Dele. Esta passagem implica, sem dúvida, que, se pudéssemos ter certeza absoluta de que as estrelas são os corpos espirituais das almas intelectuais, então, é claro, nós as adoraríamos. Na Metaphysica de Campanella, publicada no mesmo ano, 1636, que a última edição do Atheismus Triomphatus, após uma recapitulação das razões e autoridades favoráveis à astrologia que ele havia dado em sua Astrologica, encontramos, como argumento contra a pluralidade dos mundos”: Creio muito firmemente — e isso parece crível a todos os povos, como testemunham Fílon e Orígenes — que as estrelas são uma República de espíritos sobrenaturais (spirituum) que passaram do mundo mental para o mundo corporal. Os céus ígneos são para eles um asilo adequado, “pois o fogo é a coisa mais ativa, luminosa e sensível, e portanto a que melhor convém aos espíritos (spiritus) dotados de poder e sabedoria”. Nesta república, que me parece assemelhar-se mais a uma monarquia, todas as estrelas estão estritamente subordinadas ao Sol, que lhes dispensa calor e luz. Aprendemos em seguida que “Uma das Dominações governa todas as coisas no mundo, como Vigário de Deus”; o corpo do anjo é o Sol visível e sua alma é idêntica à anima mundi. Os anjos que são as outras estrelas são da ordem das Virtudes. Campanella estava, portanto, firmemente persuadido de que as estrelas eram animadas. Mas elas eram, no entanto, apenas criaturas e, segundo Tomás de Aquino, seu culto não deveria, portanto, ultrapassar os limites da dulia. Campanella parece, portanto, aceitar essa limitação, pois nos é dito sobre os cidadãos de La Città del Sole: Nenhuma criatura adora com latria senão Deus, e por isso só a ele servem sob a insígnia do Sol, que é imagem e rosto de Deus, de quem vem saúde e calor, e toda outra coisa. Por isso o altar é como um Sol feito, e os sacerdotes rezam a Deus no Sol, e nas estrelas, como em altares e no Céu como Templo, e chamam os Anjos bons por intercessores, que estão nas estrelas, vivas casas deles… Como adorar esses anjos-estrelas? Algumas páginas adiante, na Metaphysica, Campanella começa sua exposição dos textos mágicos neoplatônicos que leva ao seu resumo do De V.C.C., e em Porfírio, ou melhor, na versão ficiniana do De Abstinentia, encontramos o que talvez seja a resposta: ao próprio Deus oferecemos a elevação silenciosa do nosso entendimento; aos bons anjos incorpóreos, louvores vocais, números e caracteres matemáticos; “aos deuses celestes encarnados, a saber, o Sol, a Lua e as outras estrelas, convém sacrificar fogo e luzes, já que eles nos dispensam fogo e luz”.
Talvez seja esta outra forma como funcionava a magia de Ficino interpretada por Campanella: como ato de adoração, ou pelo menos de reverência, dirigido às estrelas vivas, assimiladas aos anjos. A reconciliação teórica da magia espiritual com a magia demoníaca é mais praticável para Campanella do que para Ficino. Os corpos dos anjos planetários de Campanella são os planetas visíveis, os quais são apenas espírito, que eles derramam sem fim; não existe, portanto, conflito entre uma teoria da influência planetária transmitida por um spiritus mundi impessoal, e uma teoria da transmissão por múltiplos demônios pessoais. O spiritus mundi para Campanella é o Sol visível, o corpo da anima mundi, que domina todos os outros planetas. Além disso, a distinção entre os efeitos produzidos no espírito humano pelo spiritus mundi, ao contrário dos efeitos produzidos na alma ou espírito (mind) por anjos ou demônios, é muito vaga em Campanella, sendo seu espírito (spirit) humano bem próximo de ser uma segunda alma. Importa-lhe, no entanto, ainda que a influência planetária pare ou não no espírito (spirit) pois, no primeiro caso, o homem mantém uma alma livre enquanto, no segundo, ambos estão sujeitos ao céu.
Penso que é muito provável que a magia de Campanella estivesse prevista para funcionar de duas maneiras ao mesmo tempo: como um modelo reduzido do céu, e como uma cerimônia religiosa destinada aos anjos planetários, antes de tudo ao anjo-Sol. Campanella não teria tido medo de tal magia, embora sua própria experiência lhe tivesse ensinado que existiam demônios maus assim como anjos bons.
Muito mais cedo em sua vida, ele havia praticado um tipo diferente de magia astrológica, a crer no testemunho de um de seus companheiros de prisão em Nápoles, e nos relatos mal velados do próprio Campanella em seu Atheismus Triomphatus e em uma carta datada de 1606. Ao olhar esses relatos vemos, sobretudo à luz das razões tomistas para condenar a magia, a saber, que ela implica necessariamente demônios, por que Campanella, quando percebeu sua chance de dar apoio astrológico a Urbano, não se serviu de sua própria magia anterior, mas recorreu a práticas baseadas na magia espiritual de Ficino, que era pelo menos na aparência mais respeitável.
Em 1603, Campanella percebeu que o horóscopo desse companheiro de cela, a quem chama de “idiota adolescens”, indicava o poder de comunicar com demônios e anjos. Ele o ensinou a dirigir orações ao Sol e às outras divindades planetárias; depois, após cerimônias não especificadas, colocou-o em um estado “entre o sono e a vigília”, o que lhe permitiu transmitir as respostas dos anjos às perguntas de Campanella sobre assuntos importantes — ele era um médium em transe. Os espíritos que apareceram alegaram ser o anjo do Sol, da Lua e, às vezes, o próprio Deus. As respostas começaram a ser satisfatórias e continham profecias verídicas; os controladores eram evidentemente anjos. Mas logo tudo isso se tornou mais duvidoso quando o controlador negou a existência do inferno e afirmou a metempsicose. Então, quando Campanella pediu que um sinal inequívoco provando sua natureza angélica fosse dado ao jovem, eles se arranjaram de maneira muito hábil para que ele deixasse a prisão e eventualmente morresse. Campanella continuou sozinho e, finalmente, o controlador disse que os escritos de Campanella sobre o livre arbítrio eram interessantes, mas que os de Calvino eram melhores; quando Campanella lhe perguntou o que pensava de Agostinho e Crisóstomo sobre o mesmo assunto, ele manteve um silêncio prudente. Campanella, que sempre fora um fanático antiprotestante, viu nisso a prova absoluta de que o controlador era agora um demônio mau, e que, como ele suspeitava, Calvino era diretamente inspirado pelo Diabo.
Campanella não concluiu, no entanto, como qualquer católico ortodoxo teria feito, que os controladores haviam sido diabólicos desde o início, e apenas o haviam seduzido inicialmente com respostas satisfatórias, mas sim que agora ele sabia “que existiam demônios que lhe querem mal assim como anjos bons”. Essa experiência não lhe ensinou, portanto, que, se tentarmos entrar em contato com os anjos por meios mágicos, os demônios maus sempre acabam nos enganando. Convém, ademais, lembrar que Campanella era um homem muito corajoso. Ele percebeu perfeitamente, em minha opinião, que essa magia espiritualista particular era bastante perigosa e incerta, e nada prova que ele tenha feito novas tentativas. Mas manteve uma fé inabalável em bons anjos planetários; e, somada à sua crença no significado escatológico supremo do Sol e às suas exigências práticas em relação ao papa, isso o levou a reviver e transformar a magia do De V.C.C., da qual ele sem dúvida sabia que era demoníaca, mas que merecia ser defendida como sendo natural e espiritual.
