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Música e palavras na magia de Campanella (D.P.Walker)

Walker1988

Existem várias diferenças, tanto de ordem geral quanto particular, entre a magia de Ficino e a versão apresentada por Campanella; uma das mais evidentes é que, nesta última, a música e as palavras parecem desempenhar um papel muito menos importante. É certo que, na Metaphysica, Campanella retoma as regras de Ficino para a música planetária, e a descrição da operação mágica em AstroIogica menciona música joviana e venusiana, mas nada nos é dito sobre essa música, nem se ela incluía palavras, nem, nesse caso, quais eram. As visões teóricas de Campanella sobre música e palavras talvez possam esclarecer essas omissões.

Assim como Ficino, Campanella insiste bastante no movimento do som, no ar que o transporta e no espírito humano, em contraste com a natureza estática da luz. No entanto, segundo Campanella, não há contato direto entre o ar movido pela música e o espírito humano; os dois não estão unidos em substância: o ar transmite seu movimento ao espírito ao bater no tímpano. Há também a seguinte diferença geral entre a teoria música-espírito de Ficino e a de Campanella: para Ficino, o espírito é uma substância usada como meio de transmissão pelas almas sensíveis e cognitivas — ele próprio não tem sensibilidade, apetite ou pensamento. Já o espírito de Campanella sente, pensa e deseja. Assim, enquanto a teoria de Ficino tenta fornecer uma explicação genuína dos fatos psicológicos, ou seja, relaciona-os a fatos de uma ordem diferente — a audição, por exemplo, com os movimentos no ar e no espírito —, a teoria de Campanella, propriamente dita, não explica nada. Ele não consegue conectar dois fatos de ordens distintas, pois seu espírito (spirit) rompeu a barreira corpo-mente (no sentido de mind). É inútil explicar um fato como a audição no homem situando nele um vapor que ouve.

Os efeitos maravilhosos da música se devem a essa transmissão de movimento do ar para o espírito. Ao contrário de Ficino e da maioria dos humanistas músicos posteriores, Campanella não considera esses efeitos como tendo primariamente valor ético ou emocional, mas sim terapêutico ou produzindo prazer ou dor puros. O espírito humano possui um movimento rítmico natural, indicado pelo pulso, essencial para sua preservação; qualquer música que produza no ar movimentos do mesmo tipo, mas um pouco mais fortes, fortalecerá e incentivará esse movimento natural do espírito. Os sons graves machucam, condensam e engrossam o espírito; os sons agudos o rarefazem e o rasgam. O que é necessário, portanto, é uma combinação dos dois que seja “consonante” com o movimento natural do espírito. Este, assim preservado e fortalecido, é arrebatado — daí o prazer provocado pela música “consonante”. Para Campanella, assim como para Bacon, a consonância musical não é determinada por simples relações matemáticas entre duas ou mais ondas sonoras ou cordas vibrantes, mas é uma qualidade totalmente relativa, determinada pela conformidade dos sons musicais com qualquer tipo de espírito. Isso explica as diferenças entre os estilos musicais de vários países e o fato de animais diferentes apreciarem tipos diferentes de música.

Essa teoria leva Campanella a refutar as explicações de Paolini sobre os efeitos musicais de Orfeu, embora sua refutação seja bem diferente da de Del Rio. A música de Orfeu não poderia ter atraído todos os animais selvagens, mas apenas aqueles com alguma afinidade com nosso temperamento ou espírito, como rouxinóis, cervos, cavalos e golfinhos, não moscas, cobras, enguias ou polvos. Essa relatividade da consonância também se aplica à harmonia das esferas. O poder da lira de Orfeu não pode vir do fato de estar afinada com a música celestial. Diferentes partes do céu são favoráveis ou desfavoráveis a diferentes coisas do mundo terrestre; portanto, não existe uma única harmonia celestial que esteja em consonância com todas as coisas terrestres. Em vão Platão e Pitágoras inventam uma Música do Mundo a partir da nossa música. Vê-se claramente que eles deliram… Se existe uma harmonia nos céus e entre os anjos, ela é de uma ordem diferente e com consonâncias distintas da quinta, da quarta e da oitava… Nossa voz é para a deles o que a voz de uma formiga é para a nossa, e a mais fraca de suas vozes supera o mais poderoso dos trovões: ela não é musical para nós, mas extremamente excessiva. No entanto, Campanella parece aceitar a realidade dessas múltiplas harmonias celestes e aguarda com impaciência o momento em que, assim como o telescópio tornou possível a percepção de estrelas até então invisíveis, algum novo instrumento tornará essas harmonias audíveis.

Campanella se interessa pelos efeitos do som, não apenas no espírito humano e animal, mas também no ar. Um exemplo disso são as instruções que ele dá para tratar uma cidade atingida pela peste; elas também mostram que, tendo abandonado a base matemática da consonância, era impossível para ele estabelecer uma diferença absoluta entre o som musical e o ruído. Após instruções normais sobre a destruição pelo fogo de roupas infectadas, a purificação de poços, etc., chegamos a isto: Sinos, incrustados com fluidos aromáticos e incenso, devem tocar sete vezes por dia; e três vezes por dia, em horários pré-determinados, homens, mulheres e crianças devem subir nos telhados e, ao sinal dado, gritar em voz alta: Tem piedade de nós, ó Deus, e envia-nos ajuda contra os demônios, Teus inimigos. Pois assim o ar será purgado e rarefeito, e essas palavras religiosas inspirarão confiança e expulsarão os poderes diabólicos do ar… O ruído de canhões e de vasos de cobre sendo batidos também trarão ajuda, se ocorrerem ao mesmo tempo que os gritos. Campanella descarta alegremente a base musical da consonância em música, o que mostra que, ao contrário de Ficino, ele não sabia muito sobre teoria musical — talvez Mersenne estivesse certo ao dizer que Campanella ignorava o que era uma oitava. Como todo o seu pensamento, as opiniões de Campanella sobre música são originais e interessantes, mas carecem de qualquer fundamento empírico e são, em última análise, absurdas.

A música e os efeitos musicais concebidos sob essa perspectiva obviamente não poderiam desempenhar um papel importante na magia astrológica. A semelhança de proporção entre o som musical e o céu é explicitamente negada, o que elimina qualquer possibilidade de usar uma vibração simpática, de sintonizar os movimentos de nosso espírito com os de um planeta. Os efeitos da música não são mais estados de emoção com nuances delicadas produzidos pelo uso preciso e universalmente válido de consonâncias, intervalos e modos, mas grandes categorias de reações essencialmente físicas provocadas por uma música ou ruídos agudos ou graves, que, para um mesmo efeito, devem variar conforme o momento, o lugar e o indivíduo; o uso correto desses sons só pode ser descoberto através das experiências de Bacon. Na magia de Campanella, portanto, a música se limitava, grosso modo e de forma um tanto incerta, a colocar o indivíduo em um estado “espiritual” e físico adequado para receber uma influência planetária, e talvez a purificar o ar, como na operação de magia pública contra a peste já mencionada. Os efeitos dessa música seriam muito menos precisos e poderosos do que os das sete luzes, que imitam com precisão o céu e sua influência. A música seria ainda menos útil para invocar demônios ou anjos, pois seus corpos espirituais são de uma natureza diferente da nossa e nossa música não teria efeito sobre eles. Todas essas observações também se aplicam à poesia em versos métricos.

Para que, então, serviriam as palavras na magia de Campanella? Campanella sustentava uma teoria “natural” da linguagem, que poderia fornecer a base usual para o uso mágico das palavras (vis verborum B!). Mas sua teoria é mais racional do que a da maioria dos magos. Ela se baseia na presunção, não de que as palavras derivam seu vínculo com as coisas e, portanto, seu poder sobre elas dos nomes de inspiração divina dados por Adão, mas de que as palavras têm valor de representação ou imitação simbólica. As palavras representam as coisas que designam, seja como onomatopeias: do som Tup. Tup. produzido por um pedaço de madeira batendo em outro, os gregos derivaram o verbo typto, e nós, no vernáculo, Batto. seja como movimento dos órgãos da fala — altum, por exemplo, significa “alto”, porque a língua se eleva até o ponto mais alto do palato.

As diferenças entre as diversas línguas devem-se essencialmente a condições climáticas. Os alemães, por exemplo, têm espíritos contraídos devido ao frio do Norte e frequentemente batem no ar para se aquecer; como resultado, sua língua tem muitas consoantes e poucas vogais, enquanto o italiano tem características opostas, devido ao clima quente que relaxa.

Essa teoria da linguagem, mesmo compatível com a crença no poder mágico das palavras, não leva necessariamente a isso, e, na minha opinião, não levou Campanella a tal crença. Embora ele chame a poesia de um tipo de magia, ele pensa em um uso A do poder das palavras. Estas, por serem para ele símbolos representativos, têm um efeito mais imediato do que símbolos convencionais; tirando isso, a explicação que ele dá para os efeitos da poesia e sua transmissão de significado e emoção é comum e racional. A poesia de Campanella, no entanto, está muito mais ligada à sua magia do que sua música. Pode-se usar o poder A das palavras, é bom lembrar, para fins mágicos, e é provável que Campanella as usasse para magia demoníaca e não natural.

Em sua Poetica, ele aborda a questão: “se os poemas (Carmina) são eficazes para invocar anjos e demônios e para atrair a lua do céu”. As respostas são: não para a segunda operação, sim para as invocações: A invocação de um anjo ou demônio não depende da métrica do poema, mas de seu significado e conteúdo emocional; pois os anjos aparecem, se invocados, aos homens piedosos, mas aos ímpios, os demônios. Os demônios ou anjos, cujos corpos espirituais não seriam afetados pela música ou métrica poética humana, entenderiam e sofreriam os efeitos da poesia de Campanella, como qualquer ser humano, pois seriam capazes de compreender as representações simbólicas que a compunham.

Já destaquei várias diferenças entre a magia de Ficino e sua interpretação por Campanella; concluirei indicando algumas outras, de ordem geral.

A astrologia de Campanella era centrada no Sol, como a de Ficino; mas sua obsessão escatológica dava à sua magia uma orientação diferente. Ao contrário de Ficino, ele estava menos preocupado em fortalecer e iluminar o espírito de forma positiva, captando as influências do Sol, Júpiter e Vênus, do que em afastar os efeitos perniciosos de eclipses, cometas e planetas maléficos, Marte e Saturno. O fim do mundo não era apenas anunciado pelo Sol se aproximando da Terra, mas por todo tipo de anomalias e catástrofes celestes e terrestres: as heresias protestantes, a Nova Cassiopeia (1572), a descoberta da América, etc.. O principal objetivo de sua magia era, portanto, profilático; na sala hermeticamente fechada, as tochas e velas representavam um mundo celestial normal, pacífico, destinado a neutralizar os efeitos da realidade externa desordenada.

Outra diferença é que os objetivos religiosos e mágicos de Campanella eram ao mesmo tempo mais práticos e mais públicos do que os de Ficino. A magia de Ficino, tanto espiritual quanto demoníaca, visava efeitos subjetivos; praticada dentro de um pequeno círculo aristocrático, destinava-se a purificar e elevar o espírito e a alma. Campanella focava principalmente em fins práticos de maior alcance. Através de seus escritos religiosos, ele esperava transformar o catolicismo, converter e unificar todas as religiões e nações do mundo. Ele esperava, com sua magia, adquirir o poder de impor a conversão, ganhando a confiança e o apoio daqueles que então detinham o poder: o papa, o rei da França ou Richelieu. E, com Urbano VIII, ele esteve muito perto de conseguir.

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