Corbin (Ibn Arabi:67-69) – Sufismo
Na medida em que é o sufismo de Ibn Arabi que nos leva a questionar, esta questão essencialmente assume o sentido de um inquérito sobre o lugar, a função e o significado do sufismo como interpretação esotérica do Islã. Aprofundar tal questão exigiria um grande livro cuja hora ainda não chegou: a obra de Ibn Arabi é insuficientemente explorada; muitas obras pertencentes à sua Escola ou que a prepararam ainda estão em manuscritos; muitas conexões que assinalamos ainda precisam ser precisadas. Pelo menos vale a pena esclarecer o sentido da questão posta, pois esta reserva tarefas bem diferentes daquelas que se propõem à história e à sociologia. Ela concerne o fenômeno do sufismo como tal, em sua essência. Fazer sua fenomenologia não consiste nem em deduzi-lo causalmente de algo mais, nem em reduzi-lo a algo mais, mas em buscar o que se mostra a si mesmo nesse fenômeno, em desvendar as intenções implícitas no ato que o faz se mostrar. Para isso, é preciso tomá-lo como uma percepção espiritual, e, a esse título, como um dado tão inicial e irredutível quanto a percepção de um som ou de uma cor. Ora, o que o fenômeno desvela aqui é o ato da consciência mística mostrando a si mesma o sentido interno e oculto de uma revelação profética, porque a situação própria do místico é aqui a de se encontrar às voltas com um mensagem e uma revelação profética. A conjunção e a interpenetração entre religião mística e religião profética vai caracterizar em próprio a situação do sufismo. Ela não é concebível que em Ahl al-Kitâb, um «povo do Livro», quer dizer uma comunidade cuja religião é fundada sobre um livro revelado por um profeta, porque o Livro celeste impõe a tarefa de compreender o verdadeiro sentido. É certamente possível estabelecer homologia entre certos aspectos do sufismo e do budismo, por exemplo; mas essas homologias não serão do mesmo grau que as que se pode obter em se referindo à situação feita aos Espirituais em uma outra comunidade dos Ahl al-Kitâb. Lá mesmo se anoda a conexão original e essencial entre o shî’ismo e o sufismo. Talvez alguém impute a longos anos passados no Irã, à familiaridade com o sufismo shî’ita, a queridas amizades shî’itas, o cuidado que nos leva a acentuar aqui esta conexão. Não procuramos de modo algum fazer mistério de uma dívida do coração; é demais coisas das quais só tomamos consciência pela familiaridade com o universo espiritual iraniano. É isso precisamente que nos incita a realçar o que tem sido e continua sendo tão raramente levado em consideração. A afirmação de que a tudo o que é aparente, literal, exterior, exotérico (zâhir) corresponde algo de oculto, espiritual, interior, esotérico (bâtin), constitui a reivindicação, escriturística que é na base mesma do shî’ismo como fenômeno religioso. Ela é o postulado mesmo do esoterismo e da hermenêutica esotérica (ta’wîl). Ela não põe em causa a qualidade do profeta Mohammad como «Selo dos profetas e da profecia»: o ciclo da Revelação profética está encerrado, não se espera mais nova shari’a ou Lei religiosa. Mas o texto literal e aparente desta última Revelação oferece algo que está ainda em potência; esta virtualidade apela a ação de pessoas que a façam passar a ato, e tal é o ministério espiritual do Imam e dos seus. É um ministério de natureza iniciática; sua função é de iniciar ao ta’wîl, e a iniciação ao ta’wîl marca o nascimento espiritual. Assim a Revelação profética está encerrada, mas justamente porque está encerrada, ela postula que a iniciativa da hermenêutica profética permanece aberta, quer dizer o ta’wîl, a intelligentia spiritualis. A gnose ismaeliana fundou sobre a homologia das hierarquias celestes e terrestres esta ideia do Livro santo cujo sentido está em potência. Há, para ela, a mesma relação entre o sentido esotérico em potência e o Imâm, que entre aquela das Inteligências angélicas (a terceira) que é o Anthropos celeste, a forma adâmica do Plêroma, e aquela das Inteligências que, emanação direta do arcanjo Logos, a faz passar a ato. É impossível aqui recensar as formas e as ramificações do esoterismo em Islã. Recorda-se simplesmente a impossibilidade de as dissociar, de estudar separadamente a gnose ismaeliana, a teosofia do shî’ismo duodecimano (nomeadamente o shaykhismo), e o sufismo de um Sohravardî, de um Ibn Arabi ou de um Semnânî.
