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Diálogo entre o intelecto e o amor (Ansari)

Ansari2009

Um dia, nos meus tempos de juventude, como sabes, eu estava na escola, sentado e com mil tentações na cabeça. O orgulho se apoderou de mim e saqueou os bens do coração, dizendo: “Ó tu, que estás a serviço do outro, qual é a tua alegria se não sou eu? Que imensa felicidade possuis e quão grandes são os teus serviços!”

Assim que isso foi dito, o ego despertou. Eu o vi alegre, com as velas içadas até o topo. Disse: “Afasta-te da minha vista, pois diante de ti estão os perigos.” Entreguei-me ao choro e chorei como Adão. Afastei o coração da servidão. Desfiz o que estava feito e, envergonhado, mergulhei na água. E, acordado, mergulhei no sono. Vi-me montado num cavalo e vi-me nos negócios e no comércio. Como se movido por um chicote, galopei em direção a uma cidade chamada Herat. Muralhas densas, torres de paciência, guardiões de inteligência, fossos de lágrimas, minarete de luz e um entorno como o Sinai.

Entrei naquela cidade que parecia o paraíso, vi as pessoas em suas casas e dois seres buscando o trono. Um: o intelecto negador, outro: o amor livre e cavalheiresco. Fiquei observando para ver quem alcançaria o trono e a quem a sorte ajudaria.

O intelecto disse: “Eu sou a causa de toda perfeição.”

O amor disse: “Eu não estou preso pela fantasia.”

O intelecto disse: “Sou o eixo de tudo o que é construído.”

O amor disse: “Eu sou a borboleta enlouquecida e embriagada.”

O intelecto disse: “Eu apago a chama das paixões.”

O amor disse: “Eu bebo de um só gole o aniquilamento.”

O intelecto disse: “Eu beijo o jardim da saúde.”

O amor disse: “Eu sou José na prisão da reprovação.”

O intelecto disse: “Eu sou Alexandre, consciente e informado.”

O amor disse: “Eu, o boêmio do limiar.”

O intelecto disse: “Eu sou aquele que certifica a prata pura.”

O amor disse: “Eu sou o íntimo do santuário do encontro.”

O intelecto disse: “Eu pratico a devoção.”

O amor disse: “E eu, o que tenho a ver com a ostentação?”

O intelecto disse: “Na cidade da existência, não há nada maior que eu.”

O amor disse: “Eu sou superior ao ser e à existência.”

O intelecto disse: “Eu possuo a ciência e a eloquência.”

O amor disse: “Eu estou livre dos dois mundos.”

O intelecto disse: “Eu sou o juiz da luz.”

O amor disse: “Eu sou o buscador da Promessa.”

O intelecto disse: “Eu sou o mestre da escola do ensino.”

O amor disse: “Eu sou o perfume de almíscar da entrega.”

O intelecto disse: “Eu sou o espelho de consulta de tudo o que está maduro.”

O amor disse: “Eu estou à margem da perda e do benefício.”

O intelecto disse: “Eu recordo a sutileza das coisas estranhas.”

O amor disse: “Tudo o que dizes, exceto o Amigo, é como o vento.”

O intelecto disse: “Meu empenho sempre foi a servidão.”

O amor disse: “Eu estou embriagado de desfiladeiros divinos.”

O intelecto disse: “Eu abrigo sob o véu coisas sutis.”

O amor disse: “Eu desfruto da amizade dos bebedores de sedimentos.”

O intelecto disse: “Eu sou o guardião do homem. O representante da bondade, preso a obrigações, mereço que se preste atenção a mim. Eu abro a porta da compreensão. Sou aquele que varre as fantasias, roseiral dos pensadores, indulgência dos artistas. Ó amor, quem és tu? Quando alcanças altura para abrir a boca e alongar a língua em críticas? Quem és? Tua colheita está queimada. Eu sou aquele que é consequente com a investidura da devoção. Tu és o reflexo das penas e dos sofrimentos. Eu sou o intermediário da direção divina.”

O amor disse: “Eu perdi a razão por um gole de anseio. Aquele que acende a chama do arrebatamento, que penteia o caracol amoroso. Sou a sementeira na terra da amizade. A servidão é a autoridade do meu território. O apoio da minha grandeza é a perplexidade. Todo o meu patrimônio é provocar o desejo, e a entrega é o ofício da minha vida.”

“Eu sou o tesouro das ruínas de Bastam. Sou a pedra de toque da consanguinidade da fama e da sombra.”

“Ó intelecto, quem és tu? Tu estás no caminho com compostura, e eu habito na corte. No fim das contas, quando chegar o dia do banquete e o claro dia da alegria me ajudar, eu falarei do Amigo. Busco um fruto sem casca. Não temo o véu, nem pergunto por ele. Apareço embriagado e conquisto a honra de estar próximo da Verdade. Coloco a coroa daquele que aceita. E tu, quem és? Continuarás na porta.”

Eles estavam nesta discussão quando, de repente, da corte do rei da China, chegou um mensageiro com um escrito. Um pergaminho do rei, endereçado ao amor, que dizia:

«Ó intelecto desorientado! Ó, como a túnica do entendimento te atrapalha! Conformes-te com o posto de vizir. Se tens fama, em ti não há bravura, e se um saque recente acontece, rastejas para um esconderijo. Quando vires esta falácia, nesse dia ela estará frágil e te aturdirás. O mesmo ocorre se, na cidade do coração, um motim surgir por rancor ou se no peito uma loucura brotar por ódio. Quando se trata de saquear os restos mortais, sobretudo, é um golpe definitivo. Quando terás a coragem de arrancar a espada das mãos do inimigo? No reino, é necessário um governante astuto que, ao ver a pena, se torne linha e, ao chegar o tufão, se transforme em ganso. E se o terremoto acontecer, que não te aflija. Um rei corajoso, um reino obediente. Pois o amor é quem possui essas qualidades, portanto, o emir da região do coração é ele.

O intelecto era uma amarra e seu trajeto durava alguns passos. Na mesma linha, um caminho e, a cada passo, a cobiça e o olho velado. É algo verdadeiramente espantoso. É, pois, necessário que haja sinceridade e não falsidade; e o amor, como um relâmpago, deve arrebatar com uma chama e, com um gole, rebelar-se. E com um breve raio de luz e um olhar fugaz, ele nos tira de nós mesmos e nos leva ao êxtase do Amigo.

O homem dá à luz e o amor é o futuro; a sorte do céu se deve às estrelas, e a sorte da alma se deve ao amor. A sorte do coração depende de mantê-lo limpo de tudo que Lhe é alheio; e é uma árvore em crescimento. Se o Senhor é de Meca ou de Medina, não há dúvida de que virá. O aroma não é perfume, é uma cor da existência, um engano colorido.

As horas sem amor são sofrimento, e cumprir o dever sem coração é vaidade. Quem não está embriagado não caminha em Sua companhia. Todo o bem que possas ter ou toda semente de bondade que plantes é a ilusão de um miragem. E é uma embriaguez sem vinho. Pois quem está a caminho precisa de um amor sem ódio e de um afeto na essência do coração; caso contrário, ainda que caminhe, não chegará a sua casa, e ainda que coma palha, não alcançará o grão. O tremor é o fim de quem carece de coração; absurda é a tarefa realizada sem amor. Assim como a ave precisa de penas, o homem precisa da cabeça. Quem busca precisa de sinceridade, e o caminhante, do amor; e todo este alicerce e a boa fama destas vestes não foram concedidos a nenhum buscador, ó sábio, exceto àquele que se dirige a Deus com o coração puro. E este coração, do qual somos compradores e que desejamos com todo o nosso ser — será que o buscamos no saco dos mercadores, ou seu aroma nos chega pelas alforjas do vagabundo? Ou será que nosso amor tem cura para a dor do Primeiro Dia, ainda que, por mais que o contemplemos, seja perplexidade…? Não, não, o amor é luz sem fim. E o coração é uma partícula livre do mal. O amor é dor sem remédio. E o coração está entre dois dedos do Clemente. A Verdade governa o coração, e o remédio é uma chama do amor. E, sem amor, no coração do homem há uma chuva — e ambos, chama e chuva, por ordem do Magnífico e Poderoso. Com que caça se aplaca o leão do amor? E como cairá na armadilha o cervo do coração? Se queres que o amor aja em teu coração e te lance em direção àquele Amigo, olha primeiro para ti mesmo, observa a quem pertences e, ao te comparares com Ele: oh, quão longe estás da clemência divina! (Acaso o homem crê que foi abandonado? Primeiro, foi criado, e no fim se perderá no absurdo. Até quando este ritmo? Até quando tanta lentidão? Agora colocas o pé na tumba e já não verás a vida nem o sopro. E de nada servirá o arrependimento. Dirão: Ó tu, nascido do nada, onde está aquele Excelso e Poderoso? És um pecador nu, responderás da tumba.»

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