Ibn Ata’allah – Amarras
SkaliTL
“Ó sábio, o caminho para o qual você me convida é certamente límpido. Só ele poderia endireitar a tortuosidade do coração e finalmente realizar o sonho de ser humano. Mas para seguir esse caminho, ó sábio, seria preciso ser de outra raça que a minha e ter tido a sorte de levar outra vida. O desejo desperta em meu coração quando ouço suas palavras. E então sei que minha vida é apenas uma triste quimera. Mas para seguir esse caminho, ó sábio, eu precisaria partir. Eu precisaria me salvar para longe das correntes deste mundo. E mesmo assim, teria eu uma chance de sucesso? Meu estado interior, ó sábio, é lamentável e minha confusão é imensa. Temo nunca poder sair das impurezas em que minha alma se debate.”
Essas ilusões, ó amigo, você é o primeiro a mantê-las. Pensa você, com os gemidos de sua alma, pagar o dom que precisa fazer de si mesmo? Cesse, ó amigo, de ter compaixão dela e trate-a com um olhar lúcido. Falo-lhe da busca da Verdade e você me fala em partir. Falo-lhe da infinita Misericórdia e você me fala de seus defeitos. As correntes do mundo não existem em nenhum lugar senão em você mesmo. Proteja-se de suas próprias artimanhas e o próprio demônio renunciará à batalha por falta de um aliado.
Não Peça a Ele para te tirar de uma situação Para te permitir ter uma ação justa em outra. Se Ele quisesse, Ele te permitiria ter uma ação justa na própria situação em que você se encontra. (Hikam)
Escute, ó amigo, estas histórias. Talvez elas possam te iluminar.
Histórias: Diz-se que um homem que seguia o caminho espiritual enquanto trabalhava, cuidava de sua família e levava uma vida entre os homens comuns, recebeu a graça de ver todas as noites em seus sonhos o Profeta Maomé que se revelava a ele em uma luz extraordinária. O coração desse homem foi tomado por essa experiência e ele decidiu, a partir de então, dedicar o resto de sua vida ao culto e à oração. Mas assim que começou essa nova vida, essas visões noturnas desapareceram. O pobre homem ficou muito afetado e, enquanto chorava um dia, teve essa revelação: “Se tivéssemos julgado útil que você precisasse mudar de estado para ter essas visões, não as teríamos dado a você!” O homem então compreendeu onde estava seu erro e voltou ao seu antigo modo de vida.
Dois irmãos decidiram um dia juntos se dedicar à busca da Verdade. Mas cada um deles escolheu um caminho diferente. O primeiro decidiu viver como eremita na solidão nos picos das montanhas e nas florestas. O segundo preferiu permanecer em sua cidade, viver de um trabalho humilde e construir uma família. Ele abriu uma sapataria. Após vinte e cinco anos de separação, o irmão que vivia na montanha havia adquirido grandes poderes sobre si mesmo e estimava que era hora de descer à cidade para visitar seu irmão. Ele não deixou de surpreendê-lo, tomando um leão como montaria, pois em seu retiro todos os animais lhe obedeciam. Ele chegou assim, enquanto em sua passagem as pessoas fugiam, até a sapataria em questão e, depois de acorrentar o leão não muito longe dali, foi ao encontro de seu irmão para abraçá-lo. O reencontro foi alegre, e os dois irmãos conversaram longamente sobre a busca da Verdade e de seu mistério. O asceta, para apoiar ainda mais a escolha da solitude e do retiro, pegou um odre cheio de água e o pendurou de cabeça para baixo sem que uma única gota caísse: por outro de seus poderes, a água estava congelada! O pobre sapateiro não parecia poder fazer melhor. No entanto, pediu ao irmão que o substituísse por um instante em sua loja para comprar alguns ingredientes para preparar a refeição.
Uma jovem e bonita mulher veio, nesse meio tempo, experimentar sapatos que havia deixado para consertar. O irmão asceta estava se ocupando em calçá-la quando ouviu o leão rugir, quebrar suas correntes e ameaçá-lo, e viu a água do odre se derramar de uma só vez no chão.
O sapateiro, que na verdade havia permanecido por perto, conseguiu rapidamente acalmar o leão e amarrá-lo. Ele então voltou para seu irmão sem dizer uma palavra. Este então se jogou a seus pés e o implorou para tomá-lo como discípulo.
A partir de então, ó amigo, que sua vocação se volte para Deus, é preciso que sua ambição seja sem limites. Aquele que se satisfaz nesse caminho na verdade se priva. Não é por suas próprias qualidades que você pretende se aproximar da Verdade, mas pelo efeito de Sua Compaixão e de Sua Bondade.
Quem se espanta que Deus possa livrá-lo de sua paixão e tirá-lo de sua negligência imagina impotente a Onipotência divina; enquanto “Deus é sobre todas as coisas o Poderoso” . (Hikam)
Cesse, pois, ó amigo, de se refugiar atrás de uma falsa humildade. Não basta fazer doações em pensamento. Você precisaria, ó amigo, lançar-se por inteiro no oceano da Providência. Até quando continuará a duvidar? Você é como aquele que sua bengala impede de andar. Você continua a se apoiar em suas ilusões porque, diz a si mesmo, “é melhor preferir o que se conhece ao que se ignora”!
Como poderia o curso habitual das coisas ser interrompido para você se você não interrompe, em sua alma, seus próprios hábitos? (Hikam)
Seus véus, ó amigo, são os hábitos que você tece incansavelmente ao seu redor. O desconhecido te assusta e você não para de fechar todas as brechas.
A Verdade não está velada, são seus olhos que carregam um véu. Pois se uma coisa devesse Velá-La, ela A teria coberto E se A tivesse coberto, A teria limitado E tudo o que limita uma coisa a domina. Ora, “Ele é Aquele que domina Seus servos” . (Hikam)
Se você quiser, ó amigo, desobstruir o campo de sua visão, você precisará desconstruir um a um seus hábitos até rompê-los. Os ascetas rompem seus hábitos sensíveis e as regras do mundo sensível então se suspendem para eles. Eles podem andar sobre a água, voar no ar, suportar dias de sede e fome. Sua visão pode atravessar o tempo e o espaço. Mas os sábios são aqueles que rompem seus hábitos interiores. Eles substituem o orgulho pela humildade, o ciúme pela doação de si mesmos, a vaidade pela sinceridade, o ódio pelo amor e a confusão pela serenidade. Não são mais as regras do mundo sensível que lhes entregam seu segredo, mas as do espírito. Não são os milagres do mundo que lhes são dados, mas o da retidão interior:
A verdadeira travessia miraculosa seria para você que o espaço do mundo se apagasse e que você visse o Além mais próximo de você do que você mesmo. (Hikam)
Dessas duas ciências, ó amigo, é como a de Moisés e al Khadir. A cada um foi dada uma ciência que o outro não conhecia. Moisés, aniquilado na visão da Unidade, estava, em sua retidão, apegado à Lei. Al Khadir, iniciado no segredo da intemporalidade, julgava o presente em função do futuro. Mas as duas ciências reunidas não diminuem o oceano da Ciência divina mais do que o que uma andorinha poderia beber dele.
