Corbin (TC:206-209) – Forma do Templo da Caaba
De fato, para que seja possível uma meditação que, de nível em nível de ser, transfigure seu objeto, é preciso dispor de um esquema do mundo onde os universos se escalonam em graus de luz e pureza crescentes. Tal é precisamente a figuração cosmológica que se reencontra em toda a tradição teosófica do Islã. No filósofo xiita, Qâzî Sa’îd Qommî, que será seguido na aplicação que faz ao sentido esotérico da forma do Templo da Caaba e dos ritos da peregrinação, encontra-se esse esquema tradicional com algumas precisões originais. Há três categorias de universos: o mundo do fenômeno (‘âlam al-shahâdat), o domínio das coisas que caem sob a percepção dos sentidos (‘âlam al-molk). Há o mundo suprassensível (ghayb), mundo da Alma ou dos Anjos-Almas, comumente designado sob o nome de malakût, “lugar” do mundus imaginalis cujo órgão de percepção próprio é o conhecimento imaginativo. Há o mundo inteligível das puras Inteligências ou Anjos-Inteligências, que se designa comumente como o jabarût, e cuja intuição intelectual é o órgão de percepção apropriado. A essas três categorias de universos o filósofo relaciona três categorias de espaço e três categorias de tempo: há o tempo obscuro e denso (zamân kathîf) do mundo sensível; há o tempo sutil (z. latîf) do mundo imaginal do malakût; há o tempo ainda mais sutil, o tempo absolutamente sutil (z. altaf) do mundo da Inteligência. A diferenciação dessas categorias de espaço e tempo tem sua origem em tantas diferenciações específicas do movimento, desde o movimento das coisas naturais em devir até o puro movimento espiritual (harakat ma’nawîya). Os espaços diferenciados são eles mesmos totalizados na noção de uma energia inicial cujo movimento engendra a forma de espacialidade à qual se origina tudo o que toma forma no ser — espiritual tanto quanto material — e designada ora como Nafas al-Rahmân (o Sopro do Misericordioso), ora como a Nuvem primordial (’amâ’). Por essas precisões, o filósofo se sente à vontade para conceber a realidade de eventos e formas que são de fato eventos e formas, mas cujo tempo e lugar não são os do universo sensível ao qual se tem o hábito, de se referir exclusivamente às noções de evento e forma. É que há entre essas três categorias de universos um certo número de relações essenciais, tais que cada universo superior é a causa daquele que lhe é inferior, e que cada universo superior contém o conjunto dos universos que estão abaixo dele, de uma maneira mais sutil e mais eminente, e que, ao mesmo tempo em que o contém e o engloba, é simultaneamente o esotérico (bâtin), o oculto, o interior, o centro. É assim que cada ser do molk tem um malakût que lhe é particular, que o governa e o cerca, ao mesmo tempo em que lhe é interior (é o “esotérico” dele), da mesma forma que cada ser do malakût, por sua vez, tem um jabarût que o domina e o cerca (o engloba e o contém). Em outras palavras, cada ser tem uma res divina (amr rabbâni), um Verbo divino (Kalimat ilâhîya) que é seu próprio malakût, seu “esotérico”, o Homem interior, sua realidade arquetípica secreta, e que simultaneamente é o Vigilante, o Guardião, como sendo a causa que o contém e o encerra. Ver-se-á em breve que aí mesmo está o segredo da Pérola que um hadith xiita recorda, em consonância impressionante com o célebre hino dos Atos de Tomé (infra III, 2). E é tudo isso que seria preciso conhecer, se se quiser conhecer um ser humano em sua “forma integral” (em oposição às interpretações mutiladoras das quais se citava, no início, um exemplo a propósito do caso de Balzac). Pois esses três mundos ou essas três categorias de universos se encontram investidos no ser humano. Há do jabarût e do malakût no homem: aí mesmo está o homem essencial, o homem verdadeiro, o homem interior, de tal forma que, quando esse homem se retira de sua envoltura do mundo fenomênico, não cessa de subsistir integralmente como homem. Apreender a realidade do malakût no homem, o poder configurador desse malakût, digamos seu poder “ideoplástico”, é apreender, sob a luz própria à filosofia xiita de Qâzî Sa’îd Qommî, a forma como obra incumbente ao Espírito. E para apreendê-lo assim, tem-se de considerá-lo na dimensão que, para todos os pensadores, coloca o homem “em seu Verdadeiro”, seu Verdadeiro inalienável, a saber, sua dimensão escatológica.
