utpaladeva:ratie-irsa-consciencia-da-pura-subjetividade

Ratié (IRSA:737-739) – consciência da pura subjetividade

A abordagem racional do tratado certamente demonstra apenas a validade de um uso; mas é esse uso objetivador que, paradoxalmente, possibilita a tomada de consciência da pura subjetividade. Por onde se vê, aliás, que a via (mārga) constituída pela Pratyabhijñā, se progride independentemente da autoridade das Escrituras, deve levar quem nela se engaja à intensa tomada de consciência da qual os āgama śivaítas são apenas a expressão segunda: a investigação racional em que ela consiste não recorre às Escrituras como a um meio de conhecimento cuja validade seria de antemão pressuposta – ao contrário, é ela que, de certa maneira, confere a essas Escrituras sua validade, pois, como Abhinavagupta o precisa, uma Escritura só constitui um meio de conhecimento válido para aquele que realiza por si mesmo a intuição que ela expressa, e pois o objetivo último do tratado é provocar essa realização em outrem.

É verdade que esse reconhecimento maravilhoso de si não é de forma alguma garantido pela razão. Como Utpaladeva admite, as mais belas demonstrações dessa ausência de contradição não produzem necessariamente, em um sujeito empírico saturado de boa vontade, a realização de sua identidade com a consciência absoluta. Pois em um sistema que dá um lugar tão imenso à liberdade, a necessidade da razão só é constrangedora contanto que a consciência queira se deixar constranger, e mesmo que a abordagem racional do tratado atinja o objetivo que a Pratyabhijñā lhe atribui, permanece um abismo entre a admissão teórica da possibilidade de dizer do Si que é o Senhor descrito por Utpaladeva e Abhinavagupta, e a plena realização dessa identidade. Esse abismo, paradoxalmente, é apenas um desvio infinitesimal, a “ponta” evanescente de um ato cognitivo: o sujeito que necessariamente faz a experiência de sua pura subjetividade quando compreende a inferência constituída pelo tratado é sempre livre para ignorar essa experiência além do tempo e, no entanto, aninhada no coração da temporalidade, para deixar passar esse instante fugitivo no qual não é mais que consciência absoluta de ser consciência absoluta – basta-lhe prestar atenção apenas ao estado intermediário do ato cognitivo no qual se apreende como um sujeito apreendendo um objeto conceitual distinto dele, e deixar-se levar, instante após instante, no fluxo dos conceitos, sem nunca tomar plena consciência da subjetividade da qual brota e na qual se resolve constantemente esse fluxo. Em última instância, a Reconhecimento depende, portanto, apenas da graça (anugraha): a razão só pode evidenciar uma evidência à qual a consciência sempre pode recusar-se a render-se. Desse ponto de vista, o sistema da Pratyabhijñā tem algo de profundamente trágico – ou profundamente cômico, como se queira: não são senão, sem dúvida, dois aspectos parciais que a noção de jogo (krīḍā) da consciência abrange –, pois a graça dos śivaítas não dualistas não é certamente a boa vontade de um deus distante, mas a da própria consciência escolhendo aparecer-se alienada; ela não deixa de ser apreendida pelo sujeito alienado como a boa vontade de um Outro ao qual permanece desesperadamente suspenso, precisamente porque o sujeito empírico é a consciência aparecendo como alienada.

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