utpaladeva:ratie-irsa-si-e-senhor

Ratié (IRSA:731-735) – Si e Senhor

O tratado, por mais racional que seja, não demonstra; ele mostra. A razão de que faz uso não se opõe à experiência para contradizê-la ou suplantá-la em um domínio que lhe seria inacessível: ela apenas desvela a experiência, contenta-se em fazer com que o outro tome consciência do saber que já possui. E o que Utpaladeva assim desvela é, segundo Abhinavagupta, o fato de que o Si, imediatamente experimentado por todo sujeito limitado como constituindo sua subjetividade, possui os mesmos atributos que o Senhor de quem ouviu falar por outros meios:

O é despertado (avabodhyate) por este tratado (śāstra) chamado Pratyabhijñā que evidencia potência (prabhāva poderes (śakti) de vontade, de , que consiste em uma inferência para outrem (parārthānumāna) completa, estabelecendo um uso (vyavahāra). Pois as pessoas asservidas (paśuloka) que, por causa de um desconhecimento (moha), têm uma convicção como “não sou o Senhor”, mesmo quando seu Si (svātman) se manifesta, são despertadas exatamente da mesma maneira que se desperta um possesso (bhauta) que, por causa de um desconhecimento (moha), tem a convicção de estar despossuído de si mesmo (apahārita), : “quem és tu, então?”; e se : “aquele que tem tal rosto, aquele que tem tal roupa”, repetindo-lhe ainda e ainda: “vê (paśya)! O que está em ti mesmo (svātman)! ” – e não se produz nenhum novo (apūrva) neste .

Aquele que é considerado um possesso ou um louco (bhauta) crê-se despossuído de si mesmo: mesmo manifestando-se a si mesmo, não está mais atento a essa presença em si e se desconhece. Não se comporta mais, na experiência corrente (vyavahāra), como se estivesse presente; nem fala de si mesmo como se estivesse presente, porque considera esse uso (vyavahāra) impossível. Tira-se-o desse estado não lhe ensinando algo que ignorava até então – pois não pode realmente ignorar que é ele mesmo: esse saber imediato está presente em cada uma de suas experiências –, mas mostrando-lhe que as propriedades que se atribui estão em si mesmo, e não em outro lugar como ele crê, e permitindo-lhe assim agir e expressar-se no mundo em conformidade com o conhecimento que ele já tem de sua própria presença. O mesmo ocorre com os indivíduos que estão alienados (paśu) porque consideram que não são o Senhor, isto é, aquele que possui os poderes (śakti) que diversos āgama atribuem à divindade suprema: o tratado se aplica a evidenciar no próprio indivíduo as propriedades (dharma) usualmente atribuídas a esse Senhor, pois é a posse dessas propriedades que torna legítimo o uso do termo “Senhor” em relação ao Si. Contentar-se-á, portanto, em evidenciar em uma análise fenomenológica das cognições perceptivas, memoriais e conceituais os “poderes” (śakti) que constituem sua soberania (aiśvarya), ou em mostrar, na análise da percepção, do desejo ou da intencionalidade, que o objeto depende dele como um reino (rājya) de seu rei, etc.

Os filósofos da Pratyabhijñā insistem, portanto, no fato de que o tratado é capaz de incitar o sujeito empírico a prestar atenção à sua própria experiência apenas como um instrumento catártico: o poder da razão é o poder de eliminar a opinião (abhimanana) segundo a qual “o que se manifesta, no entanto, não se manifesta”; e essa ação exerce-se apenas no plano do vyavahāra, da experiência mundana e de sua formulação, pois consiste mais precisamente em eliminar a opinião errônea segundo a qual as expressões que designam o Senhor seriam contraditórias (viruddha) com aquelas que designam o ātman do sujeito empírico, porque o Senhor de que falam os āgama seria uma entidade distante e inacessível à experiência. Enquanto o sujeito empírico “tiver o coração entrelaçado” com essa opinião, afirma Utpaladeva, ele é incapaz de se dispor à sua própria experiência. Afirmar desse modo que o tratado se contenta em tornar possível um uso mundano, eliminando essa opinião errônea, não é, ao que parece, conceder um grande poder à razão, e pode-se questionar em que a instauração de um simples uso mundano pode ser de alguma ajuda ao sujeito alienado. Ao fazer uso de uma inferência em relação à consciência absoluta, o filósofo, aliás, fecha-se de imediato na estrutura ternária do sujeito, do meio e do objeto de conhecimento (pramātṛ, pramāṇa, prameya): fazer do Si o objeto de uma inferência – mesmo que seja svabhāvahetu e não kāryahetu – é já reificar a vivente espontaneidade do que é puramente subjetivo. Abhinavagupta admite ele mesmo que, desde que se fala da consciência absoluta, ela decai ao nível de objeto de conhecimento, e que tal objetivação, por maior que seja a arte de sugestão empregada por aquele que ensina, é inevitável ao menos em parte. Tentar demonstrar, ainda que um simples uso referente à consciência, é, portanto, já objetivá-la, é já transformar em coisa o que precisamente não é coisa, mas puro ato pelo qual toda coisa vem a ser. E, no entanto, nem Utpaladeva nem Abhinavagupta consideram que o uso da razão seja em vão.

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