Ação dos arquétipos sobre o ser humano (Zolla)
Zolla2016
Um arquétipo é o que reúne em um conjunto uma pluralidade de objetos, coordenando-os a certos sentimentos e pensamentos. O contato com um arquétipo não pode ser expresso na linguagem comum, exige exclamações e idiossincrasias, implica uma certa excitação.
Quando uma mente cotidiana toca um arquétipo, perde seu equilíbrio instável e cai no desespero. Pode acontecer de repente: o amor surge durante uma representação galante, a fúria explode na ocasião mais fútil, o desespero desce quando a ambição está satisfeita, o dever cumprido, o afeto de todos garantido.
Os americanos, nos anos sessenta, iludiam-se de ter resolvido seus problemas, suprido as necessidades, promovido os interesses nacionais, quando um novo líder invocou de modo eficaz o arquétipo do sacrifício: “Não perguntem o que o país pode fazer por vocês, mas o que vocês podem fazer pelo país” — e eis que o eleitorado são e sensato transformou-se numa multidão turbulenta, ávida por riscos e renúncias. Acontece frequentemente que a aproximação de um arquétipo até então negligenciado inflija sonhos advertidores, como quando Hamlet exclama: “Deus! Eu poderia estar confinado numa casca de noz e me considerar rei do espaço infinito, não fosse pelos maus sonhos que tenho.”
Uma vida totalmente sensata e disciplinada é uma utopia: acredita poder ignorar os arquétipos. O homem precisa de axiomas para a mente e de êxtase para a psique, assim como precisa de alimento para o corpo: êxtase e axiomas só podem vir do mundo dos arquétipos. Nem bastam êxtases leves, arrepios modestos: a psique busca a plenitude do pânico. O homem quer periodicamente se perder na floresta primitiva dos arquétipos. Ele faz isso quando sonha, mas os sonhos não bastam. Precisa desaparecer acordado, arrebatado por um arquétipo em plena luz do dia. Sentirá o chamado da Simetria, da Conjunção, da Unidade na Díade e será arrastado de algum modo para o abraço (dizia Leopardi: “O mortal ferido contempla a filha de sua mente, a ideia amorosa, ainda nos abraços corpóreos”); a Emergência-do-número-predestinado o forçará a entrar num cassino; arquétipos que não saberia nomear o empurram sucessivamente para a briga, a bebedeira, o banquete, a arenga. Certas sociedades preveem sessões sensatas de transe periódico, e a técnica para desencadeá-lo é quase sempre de uma simplicidade extraordinária: acelera-se o canto e a dança, salta-se cada vez mais alto, fuma-se mais que o normal. Mas em todo lugar e sempre, cada indivíduo tem seu mito particular, sua representação pessoal, que o põe em comunicação extática com o arquétipo que o atormenta. Genet dedicou a essa condição universal a peça O Balcão.
Poucas obras expressam com tal rigor a dominação dos arquétipos: o Bordel universal da peça é a instituição social que a cada um dá meios de representar, com a companhia e os recursos teatrais adequados, a cena arquetípica que o obseda e define.
Um arquétipo atinge a todos, pelo menos uma vez na vida, na forma de um evento ou de uma sequência, de um ato único de poucas falas, e passa-se o resto da existência reiterando-o, encantado e condenado a uma infinita monotonia. É quase impossível encontrar um contraponto, imaginar um trauma que liberte, porque qualquer coisa que aconteça, o obsediado se esforça para fazê-la caber em sua obsessão. Não é só nos romances vitorianos que uma vida cheia de mudanças e aventuras permanece presa à lembrança de uma experiência infantil ou adolescente: ultraje, humilhação ou simples desapontamento. O acerto de contas já mofado, a liquidação incrivelmente adiada são o ideal do protagonista, um herói da teimosia, no qual o leitor vitoriano se projetava sem reservas. O protagonista que não esquece vagueia pela terra, envolve-se nas mais variadas empreitadas, mas só para voltar no fim à vila no brejo onde deve acertar as contas, encerrar a partida monomaníaca. O episódio do qual não consegue curar-se, revelando-lhe o arquétipo fatal, imprimiu-lhe uma marca indelével.
Meshane makom, meshane mazal — “muda de lugar, muda de sorte”, diz um provérbio hebraico, mas não vale para essas almas contraídas na revelação dolorosa de seu arquétipo dominante.
Às vezes, o trauma ocorreu na primeira infância e não se guarda memória consciente dele; então, a vítima se assemelha ao paciente do experimento que Bernheim gostava de exibir a seus alunos. Ordenava-se a ele, sob hipnose, que executasse algum gesto sem motivo a certa hora, e depois o despertava do sono hipnótico. Quando a hora chegava, o paciente obedecia à ordem recebida com ar um pouco perplexo, mas arranjando na hora alguma desculpa aparentemente racional para justificar-se. Uma ordem desse tipo está implantada em muitos por um encontro infantil com o arquétipo predestinado, e eles passam a vida esforçando-se para cumpri-la, dando-se justificativas plausíveis. Às vezes, até mesmo a cena arquetípica é herdada: quantas filhas continuam a encenar a farsa compulsória da mãe, quantos filhos prosseguem a representação do pai, e quantos, por fim, desesperadamente executam até mesmo o arquétipo do genitor do sexo oposto, desafiando obstáculos incríveis com invencível e demente fidelidade.
O Bordel universal é o lugar ideal onde se fornecem coadjuvantes, figurantes e adereços para a representação engramada: o velho funcionário veste o uniforme do colégio e recebe a punição desejada, o militar rude veste a batina e a estola para ouvir a confissão excitante. Mas esse Bordel é um ideal; a vida é avara em instituições tão providenciais, e o arquétipo empurra para buscar válvulas de escape disfarçadas e obscuras. Força suas vítimas a mímicas estranhas e gratuitas, a tics penosos e grotescos.
Sobre esses sinais, Campanella construiu um método de investigação psicológica. O enviado de Richelieu, Gauffridi, conta que o observou pela vigia da cela enquanto, absorto em escrever uma carta, contraía o rosto em mil caretas. No diálogo seguinte, perguntou-lhe a razão, e Campanella respondeu que redigia um apelo a um cardeal e, para entender sua alma e adequar o teor do escrito, reproduzia meticulosamente suas caretas habituais. Assim fazendo, conseguia sentir por reflexo seus sentimentos.
Com seu repertório de caretas, cada um evoca sem cessar o trauma inesgotável de seu encontro com o arquétipo fatal, reproduz a expressão com que enfrentou o instante inapagável. Só um rosto, um jeito desimpedidos são impenetráveis; as compulsões, os tropeços, as imprecações e as redundâncias de cada um estão gritando em público suas misérias mais íntimas, a maldição indelével. Escreveu Hopkins:
O fermento que a alma extrai de si mesma Azeda uma massa insípida. Vejo que assim São os condenados: — seu castigo, Como eu sou o meu, é suar para serem eles mesmos.
O senhor é reservado, lacônico; ao contrário, o escravo está sempre em flagrante confissão; o que no comportamento de cada um redunda define sua particular servidão interior. Toda expressividade sem propósito é indício de delírios; perjúrios e blasfêmias, torpezas verbais e enchimentos do discurso são gemidos de encadeado.
Bastaria a consciência dessas coações exibidas para libertar-se delas. Pode ajudar uma visita ao Bordel universal imaginado por Genet, ou àquelas que Blake chamava Os Salões de Los:
Todas as coisas realizadas na face da terra se veem nas claras estátuas dos Salões de Los, e cada era renova seus poderes a partir dessas obras, com todas as vicissitudes patéticas que acontecem por ódio ou amor bizarro, e toda pena e toda dor estão aqui esculpidas, toda afinidade de parentesco, casamento ou amizade nas mais variadas combinações são aqui moldadas com arte estupenda.
A chave que encerra cada um em sua cela também poderia libertá-lo: quem se postasse a surpreender em si mesmo as redundâncias do coração, da linguagem, dos traços, emancipar-se-ia. Em certas civilizações, fazia-se isso por simples educação.
O liberado em vida poderia visitar os Salões de Los como um inofensivo bazar de curiosidades; o alívio temporário que os escravos obtêm com suas redundâncias lhe pareceria digno de pena, como a dose diária dos intoxicados, como o lúgubre desabafo dos obsediados.
Um romance de Piotr Demianovich Uspenskij conta do homem que foi expulso da escola, perdeu uma herança no jogo, ficou desempregado, viu a noiva fugir e, no desespero, foi suplicar a um mago, que o projetou de volta aos seus anos de escola, e tudo lhe aconteceu uma segunda vez; pouco a pouco, ele cometeu os mesmos erros, embora agora soubesse que se arruinava ao cometê-los. Descobriu assim sua escravidão e, fortalecido por essa consciência, depois de reviver sua vida uma segunda vez, encontrou-se de novo no escritório do mago.
Quando saiu, olhou sonhador o beco moscovita e os gatos sonhadores que ali ociosavam, e finalmente entendeu o que era estar impessoalmente aqui e agora, libertado de si mesmo.
Geralmente, ao contrário, o homem agarra-se aos trapos de seu passado, à sua identidade biográfica, e repete sem cessar as cenas que expressam sua equação pessoal. Uma vez subtraído à dominação de seu arquétipo privado, compreende-se o jogo arquetípico total e instaura-se, diz Keats, “uma comunhão com as essências, uma espécie de unidade”, experimenta-se um êxtase que, Keats acrescenta, “destrói a pessoa”.
O xamã arriscava a própria vida para tornar-se, por sua vez, todos os arquétipos, personificando-os sistematicamente, mas não num estado de possessão inconsciente; venerando-os, não como um simples devoto, mas como um ator que se identifica apaixonadamente, mantendo-se todavia totalmente lúcido.
O conhecimento dos arquétipos não é dado a quem crê na força denotativa das palavras, e nomeá-los é o maior problema da linguagem. Só o poeta é capaz disso, ou um mímico sagrado, ou o dançarino que traça espirais em torno do coração, mostrando a vida que dele procede, como um fio do novelo. Um arquétipo, para sê-lo, deve ter uma parte inconsciente, submersa: sua denominação deve acompanhar-se de sofrimentos e alucinações e, no mínimo, exige uma alma comovida, capaz de transpor-se em símbolos. Só por meio de um símbolo, de fato, um arquétipo transparece, como explicou Yeats em Dramatis personae: toda emoção evoca eventos, assim quem odeia fortemente gera violências incontroláveis; as emoções encontram nos símbolos seus canais. Uma meditação sobre a luz do sol suscita o que o sol simboliza, a emoção sensual gera sonhos de águas; um símbolo produz uma emoção.
Quando símbolo e emoção, forma e matéria se fundem num único plexo, um arquétipo é iminente. Só um espírito meditativo percebe essas conjunções, que a maioria sofre cegamente.
