Arquétipos, emergência e ação (Zolla)
Zolla2016
É por meio da alquimia interior, que separa o corpo da alma e a alma do espírito, que os arquétipos emergem nitidamente. Na espagíria verde, o resíduo sólido das plantas era cozido até se tornar um sal branco, o corpo puro da planta. Destilava-se então a polpa, até liberar seus óleos voláteis: a alma da planta. O líquido restante era deixado para fermentar e, por fim, liberava o álcool ou água ardente ou éter ígneo ou essência celestial, o espírito da planta.
Os tratados gnósticos revelam que, nos primeiros séculos cristãos, uma figura de Cristo destilava o vinho através de um alambique com bico em espiral e, com o álcool obtido, incendiava a cabeleira dos comunicantes, preparando então um cordial perfumado para seu batismo do Espírito após o batismo de fogo. Como os praticantes desse ritual gnóstico e depois maniqueísta, os operários da alquimia deviam celebrar a separação da planta e, alegoricamente, de si mesmos, em três aspectos: espírito, alma e corpo. A essa separação seguia-se uma obra ainda mais árdua, a preparação da “pedra” da planta. Sobre seu sal branco ou “corpo”, sua alma pura, conservada no espírito, era feita destilar gota a gota, como orvalho do céu sobre a terra em maio, e assim as três partes, espírito, alma e corpo, se reuniam, condensando-se em uma pedra compacta na qual as propriedades da planta estavam tão concentradas que emanavam, projetando-se externamente sobre os corpos contíguos. Alegoricamente, o mesmo ocorria com o homem que se identificava com as várias operações e que, no final, se transmutava em “pedra filosofal viva”.
A separação do espírito da alma significa, para o corpo do homem, a libertação dos fardos psíquicos, o desatar dos nós, das coações que a alma impõe aos membros. Geralmente, ela descarrega no corpo suas paixões, tensiona seus nervos como as cordas de um instrumento. Uma vez desvencilhado do jugo da alma, ocorre como no sono: um fluxo generoso de energia cura os membros oprimidos e trêmulos, purificando-os dos últimos vestígios de sentimento. Assim, os sais de uma planta, ao serem calcinados, perdem toda cor.
Por sua vez, a alma (ou corpo sutil), o tecido invisível das emoções e pensamentos dominantes, que permeia o corpo físico, se extrai dele, como o óleo volátil que se acumula no topo do alambique, desprendendo-se da polpa da planta, tornando-se puro aroma efusivo. A alma agora paira como um campo de sugestões fantásticas, de livre fé. Rūmī escreveu: a alma fantasiosa, que não significa nada para o espírito, em relação ao mundo ordinário e material é, ao contrário, tudo: orgulho e vergonha, paz e guerra nascem de suas imaginações (e “as fantasias que seduzem os santos são reflexos das criaturas de rosto lunar nos jardins de Deus”). Como a limalha de ferro se dispõe em rosa ao redor dos polos magnéticos, assim as almas libertas se reúnem em torno dos arquétipos. Yeats explicou em Ideias de Bem e Mal que sons, cores e formas, seja por destino ou por prolongada associação, evocam sentimentos inefáveis e precisos, manifestando “certas presenças desencarnadas cujas pegadas em nossos corações chamamos emoções”. A alma “destilada” oscila em torno dessas “potências”, atraída ora por uma, ora por outra, até que, livre do corpo como agora está, eleva-se, encontra sua órbita. Primeiro às cegas: opera com delicadeza, não segue regras, seu voo planado é cego, absorto, mas finalmente se insere com segurança inflexível de sonâmbula em seu destino claro e sem palavras.
A conjunção com o corpo a tornava rígida, impedida; agora, ao contrário, é maleável, percebe sutis premonições, sabe identificar-se com a alma de cada coisa, de cada animal, porque capta seu arquétipo. Os xamãs aprendiam a entrar na alma das espécies individuais e nos fenômenos da natureza, assimilando pacientemente seus ritmos, imitando seus timbres. A psique do xamã torna-se a alma do mundo. Crianças e loucos tentam vagamente refazer esse caminho xamânico. Em A Duquesa de Amalfi, Webster introduz um coro de loucos que parece uma polifonia de iniciação xamânica: transita de uma espécie animal para outra até culminar no arquétipo dos arquétipos, que para muitas tradições se identifica com o canto do cisne: Uivamos uma nota grave, um uivo mortal e obstinado, estridente como de mandíbulas ameaçadoras de feras ou de aves fatais. Como corvos, corujas, touros e ursos representaremos gritando nossas partes até que o clamor atroz vos tape os ouvidos e vos esfole o coração. Por fim, faltará o fôlego a nossos corpos, abençoados serão nossos corpos e como cisnes cantaremos, acolhendo a morte no amor e na paz. Em O Fauno de Mármore, Hawthorne descreve a comunhão com a natureza de um jovem fauno que, xamanicamente, sabe expandir sua alma, libertá-la do corpo mediante um encanto, um murmúrio, uma espécie de canto uma modulação da respiração, rude, selvagem, mas harmoniosa sintonizando-se sem palavras a uma melodia que era o simples jogo de suas pulsações um murmúrio suave, sedutor, persuasivo e amigo. Quando esse murmúrio é suave, convoca o bater de asas ao redor; quando, ao contrário, se torna áspero, respondem arrepios turvos, sombras rastejantes no chão: Hawthorne descreve com precisão as operações de uma alma desencarnada, vibrátil. A vara do radiestesista, o pincel do pintor, a baqueta com que o xamã toca o tambor, a espada do guerreiro em transe, são movidos diretamente pelos arquétipos: o corpo reage como uma marionete inerte enquanto a alma plana sobre o mar numinoso dos arquétipos.
