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Nomear significa individualizar o arquétipo dominante (Zolla)

Zolla2016

As crianças estão convencidas de que as coisas são funções do seu nome. Os poetas sabem quão profundo e solene é o ato de inventar um nome para um gato. Nomear significa individualizar o arquétipo dominante. Para os índios da América, encontrar esse nome era uma tarefa crucial, ainda que enfrentada com alegria, com um “canto de nomeação” bem-humorado.

Exemplar é o caso recolhido por Howard Norman entre os índios Cree do Canadá; era preciso encontrar um nome para uma moça que um dia Ficou encostada numa árvore e franziu o rosto bem apertado, seu rosto feito casca de árvore. Mas, continua a canção, assim que a olhavam, ela relaxava o rosto e explicava que um pica-pau a havia assustado. No entanto, não havia sinal algum de um pica-pau.

Outro dia, a moça estava tomando banho no lago e segurava nos juncos, “com as pernas boiando atrás dela”, e parada assim, de repente, fazia uma cara de sapo. Logo aplainava o rosto e contava que um sapo a havia perseguido. Mas ninguém via sapo algum.

Até que, certa vez, a moça sentou-se ao lado de um velhinho até que seus rostos se tocaram e o rosto dela voltou a se franzir. Deram-lhe o nome de Velhinho-Tronco.

Um nome próprio é um paradoxo; ao contrário dos nomes comuns, não designa uma classe, mas estenografa um destino, o princípio que organiza uma vida.

Nome e forma descrevem as coisas, mas primeiro vem o nome, porque reflete o arquétipo ao qual elas pertencem. Quando uma coisa se altera, quer um novo nome próprio, que reflita o arquétipo diferente que agora a governa. Sinônimo de “nome” é “honra”: aquilo que liga o homem, o encantamento social que lhe foi feito.

O poder supremo é o de nomear.

Deus, potência suprema, é o Seu nome: essa é uma verdade arcaica, mas demonstrável. A presença de Deus numa consciência é uma só coisa com o nome de Deus. Se, ao mencionar Seu nome, Deus se faz presente, e se Ele é apenas a experiência que temos d’Ele, então Ele é o Seu nome.

As coisas são sombras de seus nomes, os nomes as ligam ao arquétipo que as informa. Deus é o nome de Deus, por isso, numa correspondência mística medieval, trocada entre Pedro de Dacia e a beguina Cristina de Stommeln, a Quinta Carta de Pedro argumenta: quem ousa mencionar o nome de Deus demonstra possuir seu significado; poderia o nome, por si só, suscitar uma alegria infinita, dominar os sentidos a ponto de nada mais se ver, ouvir ou entender?

A essa interrogação, as teologias mais astutas sempre responderam que sim, porque, em geral, a essência e o valor de uma coisa estão no seu nome: na fama, na honra, na honestidade (que etimologicamente significa “nomeada”). Quando se transfere o nome de uma coisa para um papel, não há mais necessidade de transportá-la materialmente de um lugar a outro: o valor se move sem que a mercadoria material se desloque. Essa operação metafísica, em épocas arcaicas, era realizada pelos sacerdócios templários.

Em sânscrito, dinheiro é mudra, que também significa “símbolo do cosmos”. O clero templário descobriu a sequência metafísica: primeiro vem a mercadoria tangível, depois seu nome é escrito num documento que atesta sua posse, e esse nome basta para resgatar seu valor: a essência. Nesse ponto, a materialidade da mercadoria pode até desaparecer. Pode-se creditar a probabilidade de que ela exista. Depois, chega-se a creditar seu valor justamente porque ela não existe. A essa fase final e admirável se chega quando Mefistófeles abastece os cofres do Imperador com papel-moeda lastreado pelos depósitos subterrâneos, cujos metais não podem vir à superfície, porque ninguém mais tem interesse em escavá-los, já que seu valor está disponível no papel.

Ser é ser nomeado. Deus é Seus nomes.

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