Fogo, olho, espelho, raio, língua — todas essas expressões aplicadas a Deus, que expressam o dinamismo fundamental do Absoluto vivo, e que vêm diretamente de Jacob Boehme, são ofuscadas, entretanto, pela questão fundamental levantada pelo teosofista. Sem dúvida, também nesse ponto, a meditação do lusaciano pode explicar a orientação. Mas, em segundo plano, é uma experiência pessoal que é decisiva. Essa experiência é a de um Deus que é, sem dúvida, um Deus de amor, mas também um Deus de cólera. O vingador do Antigo Testamento, o próprio Deus de Lutero. Se adere tão fortemente ao pensamento de Boehme, é porque percebe que a convicção fundamental de seu mestre é a mesma que a sua, e que seu mestre fornece uma explicação para a grande questão que o preocupa.
O primeiro estágio da reflexão simplesmente justapõe os dois termos, a fim de se tornar claramente consciente de sua natureza contraditória. O primeiro é o que chamamos, na linguagem moderna, de uma verdade da experiência. Deus nos persegue com sua cólera: semeia o terror em nossa consciência, nos atinge com a paralisia. “Há dezenove anos”, confidenciou-nos o autor em setembro de 1699, “Deus queria me mortificar; me derrubou enviando-me uma poderosa tentação, e fiquei paralisado por três meses”. Considerando tudo isso, a data e até mesmo a precisão desse evento são de pouca importância. O que é surpreendente é o fato de que o teosofista não atribui a punição a Lúcifer, mas ao próprio Deus, que, por meio desse ato, expressa seu rigor. Nossa vida não é tanto uma luta com o demônio quanto a de George com o dragão, é uma luta com Deus, que prolonga seus ataques “até nos jogar no fogo, até nos derrubar”. Ele nos persegue desde nossa juventude. Ele nos deixa agir primeiro, para ver como vamos nos comportar, e assim que vê que estamos indo pelo caminho errado, usa o rigor. “Lutei”, diz o teosofista, “incansavelmente com Ele”. Não devemos mais nos surpreender com o fato de chegar a uma extrapolação, a única capaz de explicar a universalidade dessa cólera: “A cólera tem um começo eterno, assim como o Filho de Deus”. As Escrituras confirmam esse postulado: Gichtel está familiarizado com a observação na Epístola aos Hebreus (12, 29): Deus é um fogo consumidor. Entende o medo dos filhos de Israel, que confiam em Moisés: “Todo o povo tremeu de medo por causa do trovão, da luz, do som da buzina e da fumaça da montanha, e ficaram à distância” (Êxodo 20:18). Sabe que o Shembin de quem “a chama da espada deslumbrante” baniu Adão e Eva não é outro senão o Jeová que se revelou no Sinai, que lutou com Jesus no Monte das Oliveiras e que foi derrotado na Cruz. Vê na luta de Esaú e Jacó, do caçador habilidoso e do homem calmo do capítulo 25 de Gênesis, a figuração grandiosa da história da humanidade, da luta dos Esaús irados e dos Jacós inspirados pelo amor. Mas esta é apenas a primeira parte do díptico. Esta verdade da experiência é contrastada com a verdade da fé. A convicção com que a bondade essencial de Deus deve ser afirmada em um segundo momento atesta a força do drama no qual o crente está envolvido. Diante e apesar da severidade do julgamento divino, diante da violência de sua cólera, diante da crueldade de sua punição, diante da terrível majestade do Deus do Antigo Testamento, nunca devemos duvidar do amor divino. “Deus é bom, e não há mal nele. “Ora, Deus é e permanece bom em todos os momentos”. Se o mal existe, consola-se o autor, contradizendo-se, a culpa é de Lúcifer. Vamos mais longe: Deus não é apenas bom, expulsa o mal, “toda a escuridão, toda a crueldade e todo o medo”, diz Gichtel com emoção, como se quisesse persuadir a si mesmo, que tem uma consciência tão clara do sofrimento e do gosto da angústia. Ele certamente machuca, mas é rápido para curar. Age com o homem como um pai com seus filhos. “Na natureza eterna” — e Gichtel faz uma distinção importante — “só existe amor, só existe luz, só existe bondade”. “Nenhum mal é reconhecido, mas sim a luz, o amor ou a bondade”.