Boehme descreve longamente, em detalhes minuciosos, a vida e o nascimento de plantas, animais, pedras e metais; a interação das forças vitais na natureza, sua luta dentro do corpo do mundo. “Agora”, diz ele, “as pessoas me perguntarão: qual é o significado de tudo isso? O que tudo isso tem a ver com Deus? — Veja, seu espírito meio morto! Se você estivesse vivo, logo perceberia que tudo isso, toda essa vida que murmura e se desenrola no mundo, é Deus e uma expressão de Deus”. A capacidade de ver Deus na natureza não é adquirida de uma vez por todas. O “renascimento” não é um evento; é um processo que, nesta vida, nunca está completo. O diabo está observando. Devemos lutar continuamente contra nós mesmos, contra o mundo e seu espírito; contra as forças do mal que buscam mergulhar a alma de volta na carne, subordiná-la à carne; fazer de um mestre livre e soberano um servo. A inspiração, a iluminação pela luz divina, é intermitente; quando se apaga, não vemos nada. O mundo, em vez de ser uma expressão de Deus, torna-se uma tela que o esconde de nós, e em seu próprio livro, em sua Aurora, em seu Memorial, Boehme não compreende mais nada.
Mas sejamos mais precisos. Esse dom divino, do qual Boehme tanto se orgulha, é acessível a todos. É preciso renascer e, na nova luz, todo homem pode ver o que viu. Ele não é mais do que qualquer outra pessoa. Talvez menos. Apenas lutou com todas as suas forças e buscou a Deus com toda a sua alma. Venceu, porque Deus o ajudou em sua luta. Mas a ajuda divina está à disposição de todos. Tudo o que se precisa fazer é desejá-la. Deus está próximo; está na alma do homem. É no próprio homem que a revelação acontece. — “Eu não subi ao céu”, diz Boehme, “para aprender os mistérios divinos”.
No entanto, é sobre a criação do mundo e sua essência que sua “revelação” diz respeito; como ele poderia saber algo sobre isso? Ele não testemunhou o nascimento do universo. Além disso, a Bíblia conta uma história diferente.
Boehme não se intimida com essa objeção fácil. Ninguém estava presente no nascimento do mundo, nem mesmo Adão, pois está claro que quando Adão foi criado, o mundo já havia sido criado. Se, para saber algo sobre ele, alguém tivesse que testemunhá-lo pessoalmente, ninguém, obviamente, jamais saberia nada sobre ele. Se Adão sabia algo a respeito, era “em espírito” que sabia.
É curioso que Boehme, que usa e abusa da interpretação alegórica dos textos sagrados, que até mesmo os explica de acordo com seu significado na “linguagem da natureza”, não pense em desvencilhar por este meio conveniente.
Com muito bom senso, ele rebate a objeção com o seguinte raciocínio: já que ninguém testemunhou a criação do mundo e, no entanto, sabemos algo sobre ela, devemos admitir que esse conhecimento tradicional tem sua fonte no conhecimento de Adão. Ora, se Adão poderia ter tido uma revelação sobre esse assunto — o que ninguém duvida — por que ele, Boehme, não teria tido uma? Além disso, não foi de forma alguma Adão quem compôs o Gênesis; é até provável que também não tenha sido Moisés, que meramente coletou as tradições de seus ancestrais. É claro que o “querido Moisés” não poderia ter escrito nada tão irracional quanto o que lemos nele. Foi assim que a história bíblica realmente aconteceu: Adão conhecia a verdade (antes de cair), porque sua mente foi iluminada por Deus. Depois da queda, porém, sua mente ficou obscurecida. Manteve apenas uma vaga lembrança do que sabia. Seus descendentes entenderam ainda menos do que ele. Confundiram e embaralharam tudo. É provável que nada tenha sido escrito antes do Dilúvio e mesmo antes da época dos Patriarcas. Esses são os detritos de uma tradição viciada em sua própria fonte e continuamente distorcida que foi coletada posteriormente. — Isso é o que temos em Gênesis. Não é muito, como se pode ver.
Boehme também acredita que os sábios pagãos e os estudiosos modernos penetraram muito mais profundamente na estrutura do mundo do que os antigos hebreus, os patriarcas e os profetas. Devemos nos basear em suas doutrinas e usar suas fórmulas.
A propósito, não era de forma alguma o objetivo do “querido Moisés” dar ao seu povo uma revelação sobre a essência do mundo e sua história (ou poderíamos dizer sua pré-história), uma cosmogonia como a que o próprio Boehme expõe. Essas eram leis que Deus, pela boca de Moisés, desejava dar aos antigos hebreus, de modo que, ao se conformarem com sua conduta, seriam justos e, portanto, salvos. Ele não tinha a intenção de dar a eles uma lição de metafísica, que é absolutamente sem importância do ponto de vista essencial da religião, do ponto de vista do caminho para a salvação.
O que é necessário para ser salvo? Amar a Deus, crer nEle, esforçar-se por Ele, ser justo, fazer o bem, seguir, em suma, a lei natural que Deus escreveu no coração do homem. Não é necessário saber como o mundo foi criado e por quais fases teve de passar antes de chegar ao seu estado atual, assim como não é necessário conhecer as Histórias contidas na Bíblia e nos Evangelhos. Não se precisa saber nada: a salvação não é uma questão de doutrina, mas de vida. Se se vive bem, isso é mais do que suficiente. Não importa se é cristão ou judeu, turco ou pagão! Deus é o Pai celestial, o Pai do mundo e dos homens, de todos os homens. Não é apenas o Deus e Pai dos cristãos. É por isso que não é nada surpreendente que os sábios pagãos tenham recebido um conhecimento profundo. De fato, em comparação com os não cristãos, os cristãos têm apenas uma vantagem, e uma vantagem bastante perigosa: os cristãos conhecem, ou deveriam conhecer, melhor do que os outros, o verdadeiro caminho para a salvação. Na pessoa de Cristo, esse caminho foi traçado para eles; azar o deles se não o seguirem; se forem injustos; se ficarem satisfeitos com a fé histórica; se, em vez de absorverem o espírito da palavra de Cristo, discutirem incessantemente sobre a letra. Não está claro que todos estão errados, uma vez que não podem concordar? Ora, o espírito de Deus é um espírito de amor, não de discórdia. Não vemos, além disso, que não sabem nada sobre Deus ou sobre a natureza, já que não conseguem nem mesmo demonstrar aos turcos, judeus e pagãos que Deus é Trindade, o que, no entanto, é bastante fácil?
Portanto, não deixe que apresentem textos contra sua doutrina. Se estiver errado, se estiver equivocado, que isso lhe seja provado, mas por meio de provas sólidas. Então ele mesmo renunciará à sua filosofia. Mas não antes. Que um anjo do céu venha e lhe diga que está errado; se não lhe provar isto, Boehme não acreditará.