Magia

Outro aspecto da teoria neoplatônica do pneuma fantástico herdado pela cultura medieval é aquele em que ele se apresentava como o veículo e o sujeito dos influxos mágicos. Muitas vezes se perguntou sobre o que se devia entender por fenômenos mágicos, e, por mais que tal termo fosse habitualmente usado com desenvoltura, não está claro se algo como um “fenômeno mágico” é em si definível, sem que se recorra a um jogo de oposições que variam de acordo com a variedade das culturas. Contudo, pelo menos no que diz respeito à época de que aqui nos ocupamos, não podemos afirmar, sem demasiada incerteza, que falar de magia como de uma esfera distinta da pneumatologia não tem muito sentido. Em uma cultura pneumática, ou seja, em uma cultura (170) baseada na noção de “espírito” como quid medium entre corpóreo e incorpóreo, a distinção entre magia e ciência (e até entre magia e religião) não é de nenhuma utilidade. Só o ocaso da pneumatologia e a consequente mudança semântica, levando a palavraespírito” a identificar-se com a vaga noção que nos é familiar e adquire algum sentido só em oposição ao termomatéria”, tornarão possível a dicotomia entre corpóreo e incorpóreo, condição necessária para uma distinção entre ciência e magia. Os chamados textos mágicos da Idade Média (é o caso dos textos astronômicos e alquímicos) têm simplesmente por objeto alguns aspectos da pneumatologia (especialmente, certos influxos entre espírito e espírito, ou entre espírito e corpo) e, sob este aspecto, não se diferenciam essencialmente de textos como as poesias de Cavalcanti ou de Dante, que seria certamente considerado escandaloso definir como “mágicos”. Assim, o tratado árabe conhecido no Ocidente sob o nome de Picatúx, que tanto influenciou o hermetismo renascimental, define a “chave da sabedoria” como a “perfeita natureza”, e esta, por sua vez, como “o pneuma do filósofo que está unido com a sua estrela” (definição que, nesta altura, deveria ser perfeitamente compreensível para nossos leitores) e classifica depois as várias formas de magia, dependendo se elas têm por objetoespírito por espírito” (magia prática e fantasmagoria), “espírito por corpos” (talismânica), e “corpos por corpos” (alquimia).1 Em particular, fenômenos que acabamos considerando como mágicos por excelência, tais como a fascinação, deixam-se subsumir perfeitamente na doutrina dos influxos pneumáticos, e, como tais, são explicados pelos autores medievais. E se a fascinação pôde por algum tempo ser comparada com o amor quase como se fosse um modelo paradigmático, isso se deve ao fato de que ambos pertenciam à esfera do pneuma fantástico2). A opinião segundo a qual, “com uma certa arte das mulheres e graças ao poder dos demônios, (171) os homens podem ser transformados em lobos ou jumentos”, é explicada por Alguero como ação dos demônios sobre o espírito fantástico que, “enquanto o corpo de um homem está deitado em um lugar, vivo mas com os sentidos pesados mais do que o sono, pode revestir-se da forma de um animal qualquer e aparecer aos sentidos de outros homens”, e explicada por Cecco d’Ascoli como uma ilusão demoníaca da fantasia, ou como a assunção de um corpo aéreo por parte de um demônio.3

A enucleação, no interior da pneumatologia medieval, de uma esfera e de uma literatura mágica, é obra de uma época que havia perdido suas chaves e não podia (ou não queria) compreender a unidade da doutrina nem o sentido preciso das suas articulações. Este processo começa já com a teologia escolástica que, mesmo aceitando a doutrina médica dos espíritos, se esforça por isolá-la no âmbito da fisiologia corpórea e por eliminar-lhe todas as implicações soteríc ilógicas e cosmológicas que tornavam o pneuma um mediador concreto e real da “união inefável” entre alma e corpo4. Neste ponto, inicia-se um declínio, que levará fatalmente a pneumatologia para a sombra dos círculos esotéricos, onde sobreviverá por muito tempo como se fosse o caminho, que já se tomou impraticável, que nossa cultura podería ter tomado, mas que efetivamente não tomou. Ela continuará visível só na doutrina médica dos espíritos corpóreos, que ainda está viva em Descartes e, com o nome de vapores, ainda (172) aparece na Encyclopédie, sabendo que Harvey já havia proporcionado o novo modelo da circulação do sangue. Antes de entrar na sombra, porém, a ideia de pneuma ainda deveria produzir um fruto tardio e esplêndido e, tornando-se “espírito de amor”, encontrar a sua expressão mais elevada na lírica estilonovista. (Agamben, AGE:170-173)


GUSTAV MEYRINK — O ANJO DA JANELA DO OCIDENTE (GAFO)

G. Meyrink, L’ange à la fenêtre de l’occident(1927), trad. do alemão, Éd. Retz, 1975, p. 10.; trad. Yara Azeredo Marino

Eu passei o dia examinando os documentos deixados por meu primo e concluí ser inútil esperar ordenar de forma coerente aqueles fragmentos de estudos e aquelas notas tão antigos: não havia nada mais a edificar sobre aqueles escombros! “Leia ou queime”, murmura-ME sem cessar uma voz interior. “O pó para o pó!”

Que tenho a ver, em suma, com essa história de um tal John Dee, baronete de Gladhill? Que era um inglês entediado e, segundo toda verossimilhança, um ancestral de minha mãe?

No entanto, não pude mandar toda aquela mixórdia ao diabo. As vezes as coisas têm mais poderes sobre nós do que nós sobre as coisas: elas apresentam aos vivos todo o tipo de armadilhas, fazendo-se passar por monstros. Não, não consigo interromper uma leitura que, a cada momento que passa, não saberia dizer por que, cativa-ME mais. Do seio daquele caos fragmentário emerge uma forma crepuscular, bela e triste: a de um espírito superior. Um homem desgarrado de forma atroz que brilhou na manhã de sua vida para ver se amontoar as nuvens sobre a sua maturidade: perseguido, ultrajado, crucificado, reconfortado com fel e vinagre; um homem que tocou o inferno, um eleito no entanto, que afinal de contas foi elevado as alturas celestes por ser uma alma nobre, ‘sábio’ audacioso, espírito ardente.

Não, a história de John Dee, descendente de uma das mais antigas linhagens da Ilha de velhos príncipes e condes de Gales, meu ancestral por sangue materno, a história de John Dee não deve soçobrar no esquecimento.

Mas não pude escrever como desejava o que ali vi. Faltaram-ME praticamente todas as condições preliminares: a possibilidade de um estudo pessoal e o eminente saber de meu primo em um domínio que alguns qualificam de ‘oculto’ e do qual algumas pessoas acreditam se livrar ao utilizar o termo ‘parapsicologia’. Não possuo, assim, experiência e critérios. Posso apenas tentar, com um cuidado escrupuloso, dar àquele imbróglio de vestígios uma ordem e um plano racional: “Preservar e transmitir”, de acordo com as palavras de meu primo John Roger.

E certo que dispunha apenas de um frágil mosaico. Mas a rachadura de uma ruína não se faz mais emocionante do que uma mansão imponente? Enigmático aquele sorriso nos contornos de uma boca, que desmente a profunda melancolia ao liame do nariz; enigmático aquele olhar fixo sob uma fronte ausente; enigmático aquele brilho de frescor repentinamente rosa sobre um fundo que se esboroa. Enigmático, enigmático…

Isso ME custará semanas, senão meses, de trabalho estafante para desvendar, primeira etapa indispensável, essa meada já meio apodrecida. Hesito: deverei fazê-lo? Se eu tivesse uma certeza, se um conselheiro interior invisível ME aconselhasse quanto a essa decisão, eu deixaria com plena irreverência toda essa desordem virar fumaça para ‘causar prazer ao bom Deus’.

De mais a mais, impõe-se a mim o pensamento do barão Michel Arangelovitch Stroganof, que está em vias de morrer e não pode mais fumar seus cigarros R12; talvez porque o bom Deus duvida que um homem lhe testemunhe tanta disposição em servir.

Mais uma vez o sonho do rubi. Ocorreu como na noite precedente, mas a sensação de frio devida à descendência do cristal até a minha dupla cabeça não ME era mais dolorosa, de modo que não acordei. Essa impressão vinha do fato de que o rubi se apoderara definitivamente de minha abóbada craniana? Não sabia. Sempre acontecia, no instante em que o raio luminoso iluminava ao mesmo tempo as duas faces de minha cabeça. Vi que era aquela criatura com duas cabeças R12; e no entanto um outro: eu ME vi, é bem o caso de dizer ‘Janus’, mover os lábios de um dos rostos, enquanto o outro continuava imóvel. E o que movia era incontestavelmente ‘eu. O ‘Outro’ se entregou a longos e vãos esforços para emitir um som, lutando para sair de um profundo sono e pronunciar uma palavra.

Enfim os lábios modelaram um sopro e exalaram a frase a mim dirigida:

R12; Não ordene! Não se sinta capaz! Onde a razão coloca a ordem, provoca uma inversão das causas primeiras e prepara a destruição. Leia, deixando-se guiar pela mão e não semeie as devastações. Leia, deixando-se guiar R12; por R12; mim…

Senti em minha ‘outra cabeça o esforço daquelas palavras, o que, segundo toda verossimilhança, despertou-ME.

Estranho meu estado de espírito. O que acontecerá? Um espectro se liberta em mim? Uma miragem nascida do sonho deseja se misturar a minha vida? Eu sou o objeto de um desdobramento de consciência e teria eu ME tornado R12; ‘flagelado’? Longe disso, encontro-ME em excelente saúde, lúcido, sem a mínima propensão a ME sentir ‘duplo’; muito menos ainda constrangido, por quem quer que fosse, a pensar ou agir. Sou dono de minhas emoções, de minhas intenções: sou livre!…

Ainda um fragmento de recordação de minhas cavalgadas nos joelhos de meu avô vem à tona; ele ME dizia que nosso gênio tutelar era mudo, mas que um dia falaria. Então virá o fim dos dias do sangue: a coroa não planará mais acima de sua cabeça, mas resplandecerá em sua Dupla Fronte.

‘Janus’ começa a falar? É o fim dos dias do Sangue? Sou o último herdeiro de Hoël Dhats?… Não importa, as palavras gravadas em minha memória têm um sentido claro: “Leia, deixando-se guiar por mim!” E: “A razão provoca uma inversão das causas primeiras”… Que seja, obedecerei à ordem dada; mas não, não, isso não é uma ordem, além do mais recusarei ME deixar comandar; isso é um conselho, sim, sim, um conselho R12; um simples conselho! E por que não o seguirei? Portanto, não classificarei. Transcreverei ao acaso o que minha mão apanhar.

Retirei, sem olhar, uma folha da pilha de papel; reconheci a escrita abrupta de meu primo John Roger e li:

Tudo terminou há muito tempo. Mortos há muito estão os homens que aparecem nesses documentos biográficos, com suas cobiças e suas paixões. Em seu pó, eu, John Roger, ouso agora mexer; da mesma forma eles teriam agido com relação a outros homens que tivessem desaparecido antes deles, como eles desapareceram para mim, agora violador de suas cinzas.

O que está morto? O que é passado? Quem pensou, agiu, outrora, agora é ato e pensamento: tudo o que tem poder vive. Seguramente não encontramos, todos, o que procurávamos: a verdadeira chave do tesouro da vida, a chave misteriosa cuja busca é o suficiente para edificar o sentido e a obra de toda uma vida. Quem viu acima dele a coroa com o rubi? Nós, os descobridores, o que conseguimos achar? Nada além da adversidade inconcebível e a visão da morte, que pelo visto deve ter vencido! Mas está estabelecido que a chave se encontra no abismo das águas tumultuosas. Quem nele não mergulha não a obtém. O último Dia do Sangue não fora objeto de um oráculo para nossa linhagem? Nenhum dentre nós presenciou esse último dia. Devemos nos sentir felizes? Felicitar-nos? E acusar-nos também, sem dúvida.

A figura de duas cabeças não se materializou para mim apesar de rodas as evocações. Não vi o rubi. Assim deve ser: aquele a quem o diabo não virar com violência a cabeça para trás se dirigirá irresistivelmente para a terra dos mortos e não verá jamais a luz se elevar. Mas a quem dentre nós, do sangue de John Dee, o Bafomé então falou?

John Roger


  1. Picatrix: Das Ziel des Weisens, von Pseudo-Magriti. Londres, 1962, p. 7 e 205. 

  2. A aproximação entre o amor, que nasce do olhar, e a fascinação através dos olhos, já aparece em Plutarco (Symposiaka problemata, I, V, p. VII: de iis qui fascinare dicuntur. “A vista, que é vaga e maravilhosamente móvel, graças ao espírito que emite uma ponta ígnea a partir dos olhos, dissemina uma certa força admirável, sob cujo efeito os mortais cumprem e padecem muitas coisas… Aqueles que tocam ou escutam não são certamente feridos como os que olham e são olhados fixamente… A vista das coisas belas, por mais que fira os olhos de longe, acende no ânimo dos amantes um fogo intestino.” 

  3. ALGUERO DE CLARAVAL. Uber de spiritu et anima (Patrologia latina, 40, 798); CECCO D’ASCOLI, no Comentário à Sfera di Sacrobosco, em: L’acerba, op. rit. 

  4. É assim que Santo Tomás (De spiritualibus maturis, art. VII) responde negativamente à pergunta Utrum substantia spiritualis corpori aereo uniatur (Se a substância espiritual se une ao corpo aéreo), e que Alberto Magno (De sp. et resp. 1,1.8) nega que o espírito seja o medium da união entre alma e corpo