AVATARES HISTÓRICOS DE UMA TRADIÇÃO ALQUÍMICA (BONARDEL)

Bonardel1993

A história da filosofia hermética que apresento hoje não havia sido empreendida até então: não há motivo para surpresa. Os eruditos dedicados à História desprezam, com razão, tudo o que diz respeito a essa Ciência; e os Filósofos, ocupados unicamente com suas operações, negligenciam sua História e confundem todas as épocas.

Ao formular tal observação, Lenglet-Dufresnoy havia, no entanto, escolhido seu lado: "Falo como Historiador, e não como Filósofo; relato o que li, e não o que pratiquei." Nem por um instante parece tê-lo assaltado a suspeita de que fosse possível uma prática filosofal da leitura dos tratados, e que esse hiato entre História e Tradição pudesse justamente constituir o "lugar" no qual concentrar a atenção: tratar-se-ia de uma linha divisória traçada pela racionalização do saber e graças à qual essa "química louca e insensata" seria levada a ceder espaço à sua rival, "sábia, razoável, até mesmo necessária"? Desde o início, no entanto, Lenglet-Dufresnoy associou as duas abordagens, anunciando sua intenção de escrever "a história da maior loucura e da maior sabedoria de que os homens são capazes". Tratar-se-ia, nesse caso, de um tipo de vínculo entre ciências e filosofia cujo segredo teria sido perdido e cuja redescoberta justificaria um renovado interesse pela alquimia? É precisamente para alimentar essa nova esperança que se empenharão, no século XIX, cada um à sua maneira, positivistas e neo-hermetistas.

Ora, se hoje interrogamos as pseudo-histórias da alquimia tradicional frequentemente contidas nos tratados e, em paralelo, aquelas da Arte hermética posteriormente elaboradas em um espírito positivista e cientificista , chegamos a discernir, em seu confronto, a existência de um espaço paradoxal onde umas e outras parecem às vezes se aproximar para melhor se eliminarem mutuamente ou, ao contrário, empenhando-se em se combater e aprofundar o abismo entre si, acabam por trabalhar, sem o saber, na exumação de um intervalo singular que nos leva a perguntar se ele não reproduz — no plano exotérico da ciência histórica e do conhecimento positivo — o próprio mistério da operatividade alquímica e a estranha sincronicidade por ela "postas em Obra" entre teoria e prática, matéria e espírito.

Será que o palco onde se provocam e insultam há cerca de quatro séculos a História e a Tradição, as ciências profanas e a Arte hermética, poderia revelar-se o cenário de um desbravamento incomum por meio do qual ainda buscaria se fazer ouvir a voz dessa loucura sábia: "a criação de ouro do sábio"?