HULIN (PEPIC:56-59) – A MEMÓRIA E O SUJEITO

[...] Seja, por exemplo, a memória. Ela parece exigir um sujeito que se lembre, que identifique e distinga ao mesmo tempo a experiência passada [a lembrança] e sua revivência atual [a rememoração]. O budismo, que não admite nenhuma conservação do pensamento de um instante ao outro, admite que toda experiência deposita na série mental uma impregnação – vāsanā – de intensidade proporcional à sua própria vivacidade. O que é preservado dessa maneira não é uma "coisa" – vastu – mas uma simples disposição – saṃskāra – ou propensão da série a facilitar o retorno desta experiência. O retorno efetivo se produzirá se esta propensão vier a ser "ajudada" por uma percepção de conteúdo similar ou comportando um signo associado à experiência primitiva, etc. . A hipótese das "disposições" proporciona aos momentos de pensamento um tipo de unidade pragmática que permite dispo-los em série, evitando assim fazer apelo à unidade substancial de um sujeito permanente.

Um problema clássico é aquele do absurdo aparente de toda "retribuição dos atos", quando não há identidade entre o agente e aquele que colhe os frutos do ato. Os budistas, francamente, não veem uma diferença fundamental entre a passagem a uma nova existência e esta "morte" perpétua pela qual, nesta mesma vida, os dharma, corporais ou mentais, se renovam sem impedimento. O brahmanismo enfatizará a estrutura da retribuição: o nível de satisfação a alcançar da nova existência, o tipo de comportamento que se adotará, serão globalmente determinados pela situação de partida, condição animal, humana ou divina, nascimento em tal mundo, em tal país, em tal casta, etc. Mas o budismo não dramatiza nem valoriza a ruptura representada por um novo nascimento. A série aparentemente inaugurada pelo recém-nascido é o prolongamento direto da série aparentemente encerrada com o morto ]. O futuro da série depende apenas dela mesma, quer dizer das disposições adquiridas que a "perfumam", e o novo quadro de retribuição se apresenta como uma espécie de manifestação exterior das tendências ativas no interior da série . Advém ao indivíduo que lhe assemelha. Essencialmente, a retribuição budista não toma a forma de recompensas ou punições atreladas de maneira "sintética" aos atos anteriores. Pelo contrário, representa a concepção mais radicalmente imanentista de karman que surgiu na Índia, aquela que gere, entre karlr e bhoktr, o máximo de continuidade interior . Para aquele que tomou o hábito de ver no homem do instante presente o simples "herdeiro legítimo" do homem do instante anterior, o mecanismo de retribuição é sem mistério . É a evidência ressentida desta continuidade que permite então se satisfazer de simples metáforas: a criança e o adulto, o leite e a coalhada, o incêndio que se propaga na selva, etc. Rei Milinda, trad. cit., pp. 71-75; cf. Abhidharmakośa, t. 5, p. 271. Outras metáforas [produção de arroz, nó na corda, a charrete] em Mahāprajnāpāramitāśāstra, trad. cit., p. 748 sq.]].

Permanece a grande dificuldade, ilustrada pela impossibilidade em que cada um se vê estendendo aos outros sua própria consciência de si . Os vāsanā e o saṃskāra podem, de fato, bem dar conta da orientação específica, o comportamento particular através dos quais uma série já constituída confirma concretamente sua originalidade em relação aos outros. Eles não explicam como, desde toda a eternidade, os dharma se encontraram repartidos em séries homogêneas fechadas sobre elas mesmas e radicalmente cortadas umas das outras. O que parece fazer falta aqui, é uma teoria da reflexividade, do movimento pelo qual a série se totaliza ela mesma, a ponto de se deixar simplesmente apreender do exterior como unidade. E tem que se reconhecer que os textos manifestam aqui uma certa tendência a esquivar a dificuldade. A resposta do Mahāprajnāpāramitāśāstra, principalmente, é puramente sofística: "A dificuldade nos é comum, pois se o homem concebeu a ideia de Atman em relação à pessoa de outro, teria ainda de se perguntar novamente porque ele não concebe a ideia de atman em relação à sua própria pessoa”. A fraqueza dessa resposta se deve à natureza puramente artificial da hipótese simétrica visualizada: ninguém nunca é tentado a ressentir como ātman a pessoa de outro. O Abhidharmakośa, por outro lado, falha em evitar a tautologia: "Porque não há relação entre a série dos elementos dos outros e esta noção. Quando corpo ou pensamento [rūpa, citta-caitta] estão em relação com a noção de 'eu' – relação de causa e efeito – esta noção nasce no lugar deste corpo, deste pensamento; não no lugar de outros elementos. O hábito de considerar 'minha série' como 'eu' existe em 'minha série' desde a eternidade". Responder que "minha série" é constituída como tal desde a eternidade, precisamente em tendo – em vez de em "tomando" – o hábito de se apreender como "eu", vem a supor resolvido o problema da delimitação desta série em relação às outras: cada série fazendo a mesma coisa por sua própria conta, alcança-se por esta via apenas um "eu" universal ou formal. De fato, a única resposta coerente, do ponto de vista budista, parece ser a da "escola do meio". Ela consiste em considerar o problema por inteiro como um destes dilemas característicos do domínio da experiência mundana e insolúveis a seu nível. O conflito entre estas duas obviedades indiscutíveis, a consciência de si e a insubstancialidade dos elementos, convida-nos a deixar o plano memso em que surgem tais oposições. “O que é ātman para ti é não-ātman para mim; não se trata então necessariamente de um ātman. É em torno das coisas impermanentes – veja – que a imaginação desdobra suas hipóteses"