Se os poetas trágicos «percebem de todas as artes», então sabem de «todas as coisas que concernem ao humano, a respeito da excelência e da sua perversão». Se não, estão «afastados» da realidade, a um distanciamento dos fenômenos do horizonte humano (πρᾶξις [praxis]) idêntico àquele que se pode constituir relativamente aos entes por natureza (φύσει ὄντα [physei onta]). «A reprodução (μίμησις [mimesis]) imita os homens a passar por situações constituídas compulsivamente ou por vontade própria; a partir do seu agir, pensam ter passado bem ou mal; uma vez que em todas as situações (πράξεις [praxeis]) por que se passa o humano encontra-se numa depressão dolorosa ou alegra-se» [Rep., 603c]. Na dimensão horizonte humano (πρᾶξις), também os elementos intervenientes são passíveis de uma afetação fenomênica que não nos deixa a possibilidade de saber o que de fato se está a passar conosco. O «passar bem ou mal» (εὖ ἤ κακῶς πράττειν [eu he kakos prattein]), ο pensar (οἴεσθαι [oiesthai]) que se agiu bem ou mal (εὖ ἤ κακῶς πεπραγέναι [ eu he kakos pepragenai]) nas situações que se criam ou em que se caiu; o deprimirmo-nos e o regozijarmo-nos (λυπεῖσθαι ἤ χαρίζεσθαι [lypeisthai he charizesthai]) são os fenômenos práticos que, ao serem tematizados pela perícia reprodutora (μιμητική [mimetike]), passam por um processo de distorção, que pode chegar a destruir o que de fato nos acontece. Cria-se pela perícia reprodutora (μιμητική) uma distância tal relativamente à situação (πρᾶξις) humana que não nos permite acompanhar o verdadeiro sentido do que acontece nessa dimensão. Não conseguimos pôr a descoberto nada daquilo que nos afeta e que enquanto tal nos dá prazer ou nos faz sofrer, nos permite passar bem ou faz passar mal.
A dimensão da situação (πρᾶξις) está assim sujeita a uma problematicidade mais agravada do que a que está presente na dimensão da análise da natureza (φύσις [physis]). Não apenas porque o acesso a esta dimensão é, tal como tematizámos para a dimensão da natureza (φύσις), mimético, o que significa que está a uma distância que não permite um verdadeiro acesso ao que acontece aí no mundo, como simultaneamente a excelência (ἀρετή [arete]) inere numa dimensão que não tem aparentemente qualquer fundamento, porquanto estamos a tratar de estados de alma, de afetos, do modo como cada homem está ou fica disposto [Rep., 603c10], e essa forma não é de modo nenhum consensual ou unânime [Ibid]. O humano fica em estado de sítio e luta consigo próprio [Rep., 603d2. Cf. Jaqueline de Romilly, «Les Conflits de l’âme dans le Phèdre de Platon», WS, 16, 1982, pp. 100-111, para a compreensão do motivo platônico da análise do «estado de sítio» da existência na tradição poética.], uma vez que a nossa lucidez (ψυχὴ ἡμῶν) fica cheia de miríadas de contradições que se geram num mesmo momento [Rep., 603d6]. [CaeiroArete:85-86]
Eu não sei como um poeta procede, porque nunca fui poeta. Mas creio não andar muito longe de adivinhar o que ele faz dizendo que ele nada faz (não obstante a etimologia!) além da imitação, da mímica, do arremedo, em palavras, sons, cores e volumes de uma Fulguração Ofuscante do Ser, que subitamente se abrindo, nos permite que vejamos um aspecto seu, refletido no espelho embaciado do mundo natural e humano. Esse aspecto [98] rofletido, o poeta o mostra como sabe e pode. O artista não é a maior eficiência, mas a menor resistência. Poemas em palavras, sons, cores e volumes mostram o quão pouco alguns homens resistem à passagem de um feixe de luz alheia, através de sua alma. A dizê-lo assim, o Diabo se nega, e por razão bem argumentada por vontade bem aguçada. [EudoroMito:98-99]