Em “Aurora”, Boehme escreve: “Encontrei em todas as coisas o mal e o bem, o amor e a cólera, em objetos desprovidos de inteligência, como a madeira, as pedras, a terra e os elementos, bem como no homem e no animal. Ao mesmo tempo, olhei para a pequena centelha no homem e me perguntei como deveria ser considerada diante de Deus, em face dessa grande obra do céu e da terra. No entanto, quando vi que havia mal e bem em tudo, tanto nos elementos quanto nas criaturas, e que neste mundo os ímpios estavam se saindo tão bem quanto os piedosos, que eram os povos bárbaros que tinham os melhores territórios e que eram mais favorecidos pelo acaso do que os outros, fiquei muito melancólico e triste; E nesse estado, as Escrituras, que conhecia bem, não podiam de forma alguma me consolar; e certamente o demônio não estava ocioso, inspirando-me frequentemente com pensamentos pagãos, sobre os quais prefiro manter silêncio aqui.”
Essa “melancolia” da qual Böhme fala aqui não é um sentimento passageiro. Tampouco é simplesmente uma característica psicológica, como uma leitura superficial da “Epístola Consolatória dos Quatro Complexos” poderia levar a crer. Nessa obra, Böhme dedica atenção especial à melancolia, que descreve como uma “fome de luz”. A dimensão múltipla desse anseio goetheano por “mais luz” é óbvia: “A natureza melancólica”, diz Böhme, “é escura e seca, dá pouca essência ( Wesenheit), devora a si mesma e permanece sempre na casa do luto; e mesmo quando o sol brilha nela, ela permanece interiormente triste…. Na escuridão, entretanto, ela está com medo e terror diante do julgamento de Deus”. Esse homem, atacado e atormentado pelo “demônio”, confessa “o pavor da alma diante do abismo escuro, diante da cólera de Deus”. Muitas vezes, quando a tez melancólica é afetada pela fúria da estrela, ela (a alma) imagina que o demônio está aí…” Na verdade, Böhme escreve essa “epístola consoladora” para outros, para aqueles que precisam de orientação espiritual. Revela a eles até que ponto sua própria experiência dolorosa o inspira: “Antes que o tempo do conhecimento chegasse para mim, eu também era assim. Estava envolvido em um conflito difícil, até que minha pequena e nobre coroa foi concedida a mim. Só então percebi que Deus não habita no coração carnal externo, mas no centro da alma, em si mesmo. Foi só então que percebi que … Também aconteceu com os grandes santos de terem de lutar por muito tempo por sua nobre coroa de cavaleiro”.
É essa experiência pessoal que o autoriza, em outro lugar, a escrever: “Sei o que é melancolia e sei o que vem de Deus. Conheço ambas… Entretanto, tal conhecimento não deve levar à melancolia, mas à luta de um cavaleiro. Pois nada é dado a ninguém sem luta, a menos que tenha sido escolhido por Deus desde o início”. Essa passagem é encontrada na “Encarnação de Jesus Cristo”. No entanto, Böhme também sabe, como diz na mesma obra, que “o espírito de Deus não se deixa amarrar como acredita a razão externa com suas leis e regulamentos”. E continua em “Aurora”: “Quando, porém, nessa tristeza, meu espírito … se levantou seriamente em Deus, como uma grande tempestade, e com todo o meu coração e mente, com todos os meus pensamentos e vontade, resolvi lutar incessantemente com o amor e a misericórdia de Deus, Ele me abençoou, ou seja: Ele me iluminou por Seu Espírito Santo, para que pudesse entender Sua vontade e me separar de minha tristeza — e assim o espírito rompeu.”.