Não há dúvida de que esse é o verdadeiro segredo da vida do modesto sapateiro [Böhme]. É nesse ponto que ele nos permite olhar para as profundezas ocultas de seu coração e perceber que dentro dele ocorreu um processo de transformação psíquica de imenso alcance, que é tão inacessível à razão lógica quanto à fabricação superficial. Estamos lidando aqui com as realidades de uma percepção mais elevada: imaginação, como a reprodução de fenômenos sobrenaturais que só podem ser percebidos por aqueles “olhos do espírito” mencionados por Böhme em “Aurora” e, mais tarde, por Goethe; inspiração, que se manifesta quando os “ouvidos do espírito” se abrem para acentos que só podem ser ouvidos supra-sensorialmente, e que os antigos (como Pitágoras) descreviam como a “harmonia das esferas”, enquanto poetas de todos os tempos (como Homero) falavam da “linguagem das musas”, e evangelistas e exegetas das Escrituras chamavam isso de “sopro do Espírito Santo”; finalmente, a intuição no sentido de um contato espiritual que pode ser ligado à comunhão sacramental. Portanto, é perfeitamente compreensível que Böhme, em suas descrições — ou deveríamos dizer testemunhos — use imagens que são um tanto difíceis de entender e, às vezes, misteriosas. Podemos nos perguntar o que significa o amor com o qual seu espírito foi cercado “como uma noiva amada é cercada por seu noivo”. Nesse contexto, vamos citar uma passagem de “De la vraie pénitence” (1622), na qual o autor descreve sua experiência sobrenatural por meio de uma imagem, a do noivado da alma com a “Sophia celeste”:
“Quando Cristo, a pedra angular, se move na pálida imagem do homem na conversão e penitência de seu coração, a virgem Sophia aparece no movimento do espírito de Cristo, na pálida imagem, diante da alma, em seu ornamento virginal diante do qual a alma, em sua impureza, é tomada de terror, tanto que todos os seus pecados são então despertados nela e são tomados de medo e tremor. Pois então começa o julgamento dos pecados da alma, de modo que a alma, em sua indignidade, recua e é tomada de vergonha diante de sua bela amante, arrepende-se e mortifica-se como sendo totalmente indigna de receber tal joia; entendemos aqueles que provaram essa joia, e ninguém mais sabe nada sobre ela. Mas a nobre Sophia se aproxima da essência da alma e a abraça amorosamente, e colore com seus raios de amor o fogo escuro da alma, e brilha através da alma em seu corpo com grande alegria, na força do amor virginal, triunfando e louvando a Deus em nome da nobre Sophia.”
Esse tipo de imagem, que é bastante comum na obra de Böhme e desempenha um papel importante no misticismo medieval, assim como em quase todas as tradições místicas, certamente não tem nada a ver com erotismo decadente ou, acima de tudo, com confusão entre as coisas do corpo e as da mente e da alma. Em sua crítica ao misticismo sexual de Ezekiel Meth e Esaias Stiefel, Böhme deixa claro que, no que diz respeito à vida conjugal, ele, por sua vez, não pode aceitar qualquer confusão entre fenômenos carnais, de um lado, e fenômenos espirituais, de outro. Deve-se notar, entretanto, que a experiência de iluminação relatada em “Aurora” ocorreu precisamente durante o primeiro ano do casamento de Böhme. Portanto, é razoável acreditar que o jovem marido (que mais tarde se tornou pai de quatro filhos), quando exalta um certo misticismo erótico, não o faz sem alguma referência à realidade, embora em alguns de seus escritos posteriores ele às vezes use palavras muito duras — que lembram os julgamentos de certos Padres da Igreja — com relação ao ato conjugal.